CAPÍTULO 4

3.5K 527 157
                                    

"Querido diário,

Li uma vez que o bater de asas de uma borboleta é capaz de causar um enorme tornado em algum lugar. É o que chamamos de efeito borboleta. São pequenas alterações nas condições iniciais de grandes sistemas, mas que podem gerar transformações drásticas e significativas. O que estou querendo dizer é: cada pequena ação pode mudar o curso de uma vida inteira. Me pergunto que caminho misterioso e desconhecido é o que estou trilhando."

Diário de Amélia, 02/03/2019


Sebastian


Amélia estava aqui.

Estava aqui e estava absurdamente linda, brilhando sob uma lanterna azulada e parecendo realmente gostar da música. Fora a primeira vez em que eu a encontrara em outro lugar que não na escola e também a primeira vez em que vira a sublime surpresa que estampava o rosto dela enquanto eu cantava. Meu coração saltou numa batida errática dentro do peito ao se dar conta de que Amélia, a garota pela qual sou apaixonado desde garoto, agora sabia de algo a mais sobre mim. E mais importante: que gostava do que sabia.

Perdi totalmente a noção do que estava fazendo quando o olhar dela, que nunca havia se fixado em mim, que nunca havia encontrado com o meu uma vez sequer desde que me lembro – o que significa que nunca aconteceu, já que costumo lembrar de tudo em relação à ela, – ficou o tempo de duração de uma música inteira me encarando como se eu tivesse algum significado especial.

Eu tinha muito o que agradecer a Deus por não ter simplesmente esquecido a letra da música naquele momento e ter dado o maior vexame. Foi então que decidi que não havia mais jeito de continuar adiando ou ignorando meus sentimentos por mais tempo do que tinha feito: eu precisava falar com Amélia hoje, nem que fosse  parecer um doido e acabasse dizendo a primeira coisa que viesse à minha cabeça.

Mas justo quando eu descia do palco na direção dela, Astrid Lakshmi, uma garota que eu conhecia de passagem por ser capitã do time feminino de lacrosse, se adiantou na minha frente.

Eu não sabia qual era o assunto urgente que alguém como Astrid tinha para tratar com Amélia, mas não demorei a perceber que não passava de mais um de seus terríveis atos de intimidação.

Algo que nunca entrou na minha cabeça é como algumas pessoas podem sentir prazer em fazer de tudo um motivo para ofender e diminuir os outros. Como o fato de simplesmente ser diferente pode tornar alguém alvo de preconceitos e humilhações. Ou como a sociedade é escrava de seus padrões ridículos e o quanto as mentes minúsculas que vivem de acordo com eles ficam assustadas quando se deparam com alguém que não dá a mínima para isso.

E era o que estava acontecendo com Amélia. Bem diante dos meus olhos, vi Astrid pegar o precioso diário de uma garota que tinha tanto medo de falar com as pessoas que só confiava no papel para compartilhar seus pensamentos. A raiva me atingiu como nunca. Que direito ela tinha?

— Por favor. — o pedido me arrepia dos pés a cabeça. O tom é baixo e rouco e o sinto chegar até mim como água morna. É a voz de Amélia que estou ouvindo. Pela primeira vez. — D-devolva.

O choque vai embora e a raiva retorna com ainda mais força. Aquelas palavras são a primeira coisa que ouço sair da boca dela e soam amedrontadas e doloridas, por causa de uma estúpida que não tem nada melhor para fazer além de estragar a noite de uma pessoa que claramente não quer mais do que apenas ficar em paz.

— Você a ouviu, Astrid. — eu digo, ficando de frente para ela. — Pare de querer chamar atenção e devolva o que não é seu.

Ela ainda tem a coragem de parecer não entender.

— Por que é que você está sendo tão estraga-prazeres? — chia, entortando os lábios. — Você nem a conhece.

Me preparo para dizer que sim, que a conheço sim, e que mesmo se não a conhecesse ainda partiria em sua defesa porque não foi a educação que recebi ver algo errado acontecendo e assistir calado, mas não posso, porque antes que eu diga ou faça qualquer coisa Amélia se joga na direção de Astrid, tentando alcançar o diário que ainda está nas mãos dela.

Como a boa esportista que é, Astrid desvia com agilidade, e eu prevejo a queda de Amélia antes que aconteça e a seguro pelo braço.

— Você está bem? — eu pergunto, preocupado, analisando-a de cima a baixo a procura de qualquer possível lesão. Ela tinha tropeçado feio.

Erguendo meus olhos para os seus, sinto uma súbita tristeza me tomar ao me deparar com as emoções lutando dentro deles. Há agonia e um pânico terrível, tão terrível que o sinto me atravessar.

Parecendo ter levado uma descarga elétrica, Amélia se desvencilha do meu toque e sai correndo entre a multidão de pessoas que se aglomerou ao nosso redor, desesperada para ir embora.

Demoro apenas um segundo para me recuperar e seguir atrás dela, mas então lembro que o diário ainda está sob a posse de Astrid e sei que não posso ir sem pegá-lo de volta.

— Me dê isso. — mando, em um tom que quase nunca costumo usar. — Agora.

— É todo seu. — Astrid diz, colocando o caderno azul em minhas mãos,  totalmente desorientada. — Foi só uma brincadeira.

Lhe dou um olhar duro.

— É, e de muito mau gosto. — então saio correndo atrás de Amélia, sem nem mesmo pedir desculpas pelos esbarrões que acabo dando sem querer em algumas pessoas.

Quando alcanço a saída, já é tarde demais.

Ela se foi.

Relatos de uma garota que não liga pra você Onde histórias criam vida. Descubra agora