Capítulo 9

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Iara

Abro a porta do quarto levando comigo tudo que me pertence. Assim que saio do corredor eu o avisto na sala. Sentado com os cotovelos nos joelhos e a cabeça baixa entre as mãos. Assim que me vê entrando se levanta e se aproxima. Dou graças a Deus por estar indo para minha casa e estar me livrando dessa tentação que me acompanha por esses dias. Esse mister M, o senhor misterioso bagunçou a minha cabeça. Ele tem várias personalidades em uma. Não dá para acompanhar. Não dá para definir quem é esse homem. Ele passa de grosseiro para cuidadoso em um piscar de olhos. Depois passa de frágil, vulnerável e submisso para o poderoso, forte, gostoso e mandão sem que eu possa nem perceber. Definitivamente é melhor eu me distanciar o quanto antes disso tudo.

— Quer que eu prepare-te um pequeno almoço9? Estás como fome? — ele pergunta, ainda preocupado comigo.

— Pequeno almoço? maluco? Não. Não precisa se preocupar, eu... — Engulo seco, preciso ficar livre dessa tentação, isso sim. — Só quero voltar para casa.

Ele se aproxima ainda mais, pegar a mochila da minha mão. Ele para e percebo inspirando perto de mim. Ele sempre faz isso. Tenho a sensação de que está me cheirando. Aproveito a proximidade para sentir o seu cheiro fresco de banho tomado e de um perfume caro que não conheço. Seu perfume traduz sua personalidade, é muito gostoso e misterioso! Que vontade de dá uma fungada no cangote! Para de zueira Iara. Você não é nenhuma adolescente.

Seguimos lado a lado até o elevador em silêncio. Ele está como sempre, muito arrumado. Veste uma calça jeans escura, camisa branca e um blazer preto. Com certeza muito formal para os padrões que estamos acostumados. Porém, sem dúvida alguma muito mais bonito do que os padrões que estou acostumada também.

Ele me entrega um papel com várias anotações e na outra mão pega no bolso alguns medicamentos que reconheço como os que ele me deu em outros momentos.

— Aqui estão anotados todos os horários dos medicamentos que deves tomar até sexta-feira. Deixei o meu número abaixo. Ligue para qualquer necessidade. — Ele me olhar com o mesmo semblante que me acostumei a ver por esse tempo. Um olhar cuidadoso e preocupado. — Vou levá-la para a revisão com o neurologista na sexta-feira à tarde. Eu ligo para avisar o horário. Assim que estiver com o telemóvel novamente, me ligue.

— Eu te dou a minha palavra de que estou muito bem, as dores as tonturas já passaram. Você já me ajudou bastante. Não há porque continuar se preocupando.

— Eu preciso ter certeza de que estás totalmente recuperada. Tu não entendes. Essa culpa vem matando-me todo esse tempo. Preciso saber que estás bem. — Ele para me olha com a costumeira intensidade e eu vejo realmente a culpa o consumindo.

— Tudo bem. — Concordo. — Eu vou a essa revisão. Se vai te fazer esquecer tudo isso. Não custa nada constatar minha recuperação, não é? — Ele assente com a cabeça e percebo o alívio em sua face.

Seguimos para a garagem e vejo o meu carro ao lado de uma Mercedes preta. O carro é tão lindo e elegante quanto o dono. Ele coloca as minhas coisas no banco de trás e nos sentamos nos assentos da frente.

— Vou providenciar que teu carro chegue a tua casa ainda hoje.

— Ótimo! — digo. — Obrigada por tudo, mais uma vez.

— Não precisas ficar a me agradecer. Era minha obrigação cuidar de ti.

Saímos da garagem e percebo que não estamos longe do meu prédio, ele também mora no caminho das árvores.

— Também moro aqui perto — digo.

— Eu sei — conclui.

Eu olho para ele e ele para mim. Não diz nada. Como ele sabe onde eu moro? Ele percebe as interrogações em minha expressão e fala:

— Tenho acesso a muitas informações — diz por fim.

Não sei o que isso significa. Mais mistérios, mas não me interessa. Logo isso tudo é passado. Vou em direção ao rádio para quebrar o clima e pergunto:

— Posso?

Ele afirma com a cabeça. Eu ligo o rádio e procuro por alguma estação que passe alguma coisa legal.

— Acho difícil que consigas encontrar alguma coisa razoável nesse rádio — ele fala fazendo uma expressão de desagrado. — As músicas que estão a tocar nesse país não podem nem ser consideradas músicas. É só muito barulho e libertinagem. Uma depravação sem limites. — Ele continua com um cara de desprezo e eu nem acredito que ele possa ser tão preconceituoso a esse ponto. — E ainda nem falamos sobre a qualidade das letras. Não há nada a aproveitar. — Continua, agora negando com a cabeça e uma cara desdenhosa.

Enquanto isso eu sintonizo uma rádio de MPB que sempre ouço. No momento está passando bela flor de Maria Gadú.

Eu começo a cantar e me balançar. Deixo a música entrar em minha mente e limpar todas as vibrações negativas. Faço questão esquecer sua depreciação a nossa cultura e mostrar que as coisas não são bem como ele quer mostrar. Eu melhor que ninguém, conheço o universo da música popular brasileira. Temos realmente coisas inusitadas. Entretanto, temos muita, mas muitas coisas boas também.

Percebo que ele me olha enquanto eu me entrego à canção e por fim apenas comento:

— Acho que você não conhece a diversidade da música brasileira o suficiente para julgar. — Simplesmente sorrio.

Ele não comenta mais nada e estaciona em frente ao meu prédio. Desço do carro e ele também desce. Ele abre a porta do fundo, pega a minha mochila e me segue.

O porteiro me vê e já abre o portão.

— Bom dia seu Jonas — cumprimento o porteiro.

— Bom dia Dona Iara, como vai?

— Estou ótima Seu Jonas, e você? — falo, enquanto entro e Fernando fica parado na frente de Jonas.

O que ele quer?

— Senhor Jonas, eu sou o Fernando. Médico responsável pela Dona Iara. — Ele fala e coloca a mão no bolso e retira um cartão, entrega ao Jonas.

— Esse é o meu número. Qualquer necessidade que a dona Iara tenha, qualquer que seja o problema. Peço que o senhor me ligue.

O que é isso agora? Francamente! Só que me faltava. Ele estende a mochila para o senhor Jonas e vem ao meu encontro.

— Você quer entrar? Tomar um café? — digo por educação.

— Obrigado, tenho algumas coisas por resolver — fala, olhando para um relógio todo preto.

— Certo, então eu entro em contato — afirmo. — Até o fim da semana.

Viro-me e subo em direção ao hall do prédio. Jonas abre a porta com um sorriso. Deve imaginando coisa. Eu passo o braço em seu ombro dando uma batidinha cortês. Ele me leva até o elevador e ao me virar percebo que Fernando ainda me olha do portão.

9  - Termo de Portugal que representa o café da manhã no Brasil.

A Dona do Show - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora