Antes
A luz que entrava pela janela de grades não proporcionava luminosidade suficiente durante muito tempo, de maneira a escrever em conformidade, mas Estela Aires era uma pessoa de sorte na vida. Havia sempre alguém disposto a ajudá-la. Nesse momento esse alguém era desconhecido, mas isso só vinha reforçar que de facto o mundo girava à sua volta. Não importava se estava presa, encarcerada numa cela, ainda assim ela era alguém importante, alguém que tinha quem se importasse consigo. Quem lhe oferecera o computador, não levara a sua tarefa com leveza. Era um computador dos bons. Havia restrições de horários para usá-lo, mas estando o tempo todo na prisão sem muito que fazer, tinha imenso tempo livre para fazer isso. A sua colega não parecia se importar, não após as primeiras semanas de escrita desenfreada.
A sua colega de cela era uma mulher de figura bastante desleixada. Havia sido presa por posse ilegal de droga. No começo Estela não fôra com a cara dela, pois tinha modos brutos e falava mal e porcamente, mas desde que conhecera Estela, seus modos já haviam mudado ligeiramente. Era uma mulher muito fácil de manipular após descobrir as suas fraquezas e Estela tinha o seu dom natural para fazer isso.
De vez em quando Estela recebia uma prenda na prisão. Nada de muito inusitado, apenas canetas, bilhetes de fãs que acreditavam na sua inocência e outras coisas do gênero. Há muito tempo aceitara o seu destino, o de cumprir uma sentença por um homicídio que não cometeu, mas a raiva a róia por dentro. Ansiava pela vingança. E não era só pela sua prisão, era também pela prisão de Lourenço. Aquele homem era o seu homem. Vingança era algo que queria tanto quanto encontrar Xavier, seu filho. Tempo era mais uma daquelas coisas que a prisão oferecia e podia ser considerado mau ou bom, dependente do ponto de vista, o certo é que este lhe dera muito tempo: tempo para traçar um plano de vingança, de escrever e aproveitar para colocar sua carreira no auge com histórias incríveis, para pensar na vida... o que ela mais tinha era tempo.
Algo curioso durante todo o seu encarceramento, foi que após a última requerição que seu advogado pediu ao tribunal, em pról de sua liberdade condicional, seguida do fim de sua sentença, um policial da PSP, dizendo trabalhar para Bernardo Teles, a visitou na cadeia. Não sabia o que ele queria, tão pouco imaginava, mas a curiosidade estava a mil.
O homem logo que abriu a boca, teve a capacidade de a deixar intrigada. Nunca ouvira ninguém se apresentar daquela maneira.
- Bom dia - disse - Chamam-me Duarte.
- Chamam-no? - indagou.
- É. Senhora Estela Aires, pude conhecer a sua filha. Pessoa tenaz, ela.
- O que quer de mim? - o seu tom de desconfiança percebia-se a léguas.
- Boa pergunta, mas não é a correcta. Não sou eu que quero. Você quer.
- Explique-se, homem! - os seus modos também haviam mudado após tantos anos presa na mesma cela que Júlia. Ela normalmente não era bruta, pelo menos não com a máscara narcisista colocada em seu rosto.
- Para começar, este homem à sua frente trabalha na PSP - apontou os dedos para si mesmo, o que Estela estranhou - O meu chefe é o Bernardo Teles. Sei que o conhece, por isso é que aconselho desde já a não falar da minha visita. É um segredo nosso. Neste momento estou aqui na condição de representante do seu maior fã.
Estela ficou durante um minuto inteiro calada. Duarte só podia estar falando do homem que comprara rios de livros seus, com o objetivo de catapultar o seu nome ao ranking literário dos mais vendidos nacionalmente. Essa pessoa fazia isso desde que ela estava na prisão. Ela até desconfiava que fôra essa mesma pessoa quem lhe dera o computador.
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Dom de Fogo (Completo) Finalista Wattys 2021
Mystery / ThrillerUma tênue linha separa a realidade que pensamos existir e o inexplicável que Melinda Torres vai descobrir, não só em todo mundo, como dentro de si. Com a ajuda dos membros da unidade policial DOM, ao qual pertence, ela descobrirá não só o outro lado...