Atualmente
Não sabia onde estava, nem porque estava ali, mas vislumbrou uma clareira a meio de uma vasta floresta e isso a fez alcançar aquele bocado sem árvores, sem nada.
O pôr-do-sol era visível dali.
Ouviu um relincho, o que fez Melinda olhar em volta, procurando pelo animal que emitira tal som. E então o animal apareceu, mas não era um animal deste mundo, era uma mula que no lugar da cabeça tinha chamas flamejantes. O animal relinchava como numa imploração e Melinda empunhava sua arma como se fosse disparar, embora não tivesse intenção de o fazer. Afinal, o que isso faria a uma criatura que literalmente pegava fogo?
Não era a primeira vez que sonhava com aquilo. Na verdade, aquela mula perseguira-a toda a sua vida, desde que se lembrava de sua própria existência. Claro que o sonho ía mudando conforme ía crescendo, mas a mula de cabeça flamejante sempre estava presente, que nem uma maldição que teimava em acompanhá-la.
Nunca contara a ninguém, porque não achava importante. Devia ser só uma dessas fantasias de desenhos animados, algo com ligação com o cavaleiro sem cabeça que se perpetuara no seu subconsciente desde os tempos de infância.. Nem sequer considerava um pesadelo, embora aquilo a deixa-se com uma sensação estranha durante o dia inteiro. Com o passar dos anos, apercebeu-se que coincidentemente sonhava com aquilo nas noites de quinta para sexta-feira e que durante toda a sexta-feira tinha alucinações auditivas com o relincho do animal. Sempre fôra assim, mas nos últimos tempos o sonho acontecia com mais frequência.
Não pensou muito nisso, quando acordou. Puxou as persianas para cima e depois de se arranjar e comer o pequeno-almoço dirigiu-se à pequena pensão onde deixara Maurício e o Dr. Raúl na noite anterior. Havia cogitado deixá-los dormir em sua casa, afinal das contas era só uma noite, mas precisava da sua privacidade mais que nunca depois de tanto tempo de viagem. Dois homens desconhecidos em sua casa não iria ser nada ético, não para uma agente principal da PSP ou da DOM. Bom, as duas eram a mesma coisa. Iria ter que se familiarizar com o fato de pertencer a duas frentes policiais, fazendo de uma a oficial, e da outra a espécie de amante. O sentido de aventura aumentava quando pensava nesses termos. Ela adorava a sensação, porque... segredos são como torres. Era o seu trocadilho, uma frase que ela mesma criara para si, depois de todos os segredos obscuros que era obrigada a abrigar dentro se si. Ela os transportava consigo. Em seu trabalho, na sua vida íntima, estavam os segredos. Eles estavam sempre lá e eram parte de si, a Torre que os abrigava, como outrora, em tempos bem distantes, uma torre abrigara uma dragão-fêmea que fôra mãe e morrera a seguir.
O sobrenome era uma coincidência, se acreditarmos nas coicidências. Aqueles que crêem no destino diriam que era o destino sendo irónico, talvez poético, mas para Melinda que pouco se via ao espelho era só um sobrenome, ela não sabia o quanto os nomes têm poder, o quanto um nome é importante na vida de alguém.
Quando meteu as mãos no volante de seu carro, sentiu um calor preenchê-la, um calor harmoniozo e apraz, apesar de seu instinto predador, aquele que a fazia olhar para o livro que Pedro lhe emprestara e que ela deixara no banco do pendura ao seu lado, no dia anterior. A verdade é que algo a fazia sentir-se desnorteada, como se ela mesma se estivesse a tornar um caso como o de Sara Craveiro. Obviamente ela queria a resolução do caso, mas por alguma razão tinha momentos de distração, alguns até que pareciam ficar em branco na sua mente e não sabia explicar. Começara no dia anterior. Não se lembrava de ter retornado a casa, nem de ter tomado o banho que deixara o seu corpo a cheirar a baunilha e por último não se lembrava de ter entrado no elevador e ter feito o caminho até seu carro. Seria normal?
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Dom de Fogo (Completo) Finalista Wattys 2021
Mistero / ThrillerUma tênue linha separa a realidade que pensamos existir e o inexplicável que Melinda Torres vai descobrir, não só em todo mundo, como dentro de si. Com a ajuda dos membros da unidade policial DOM, ao qual pertence, ela descobrirá não só o outro lado...