Capítulo 02

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— Nossa. Que horas são? 

Eu não conseguia nem abrir meus olhos, sentia minhas pálpebras pesadas e coladas. Tentei tirar a cabeça do travesseiro, mas nos primeiros graus de elevação, senti a dor de cabeça martelando. O gesto seguinte (alcançar o celular na mesa de cabeceira para descobrir as horas), veio seguido de uma batida da mão num vidro grosso, que logo reconheci como meu cinzeiro. Eu nunca fumava no quarto, só quando... O que eu fiz na noite passada?

Eis a rotina de todo dia seguinte a uma bebedeira: repassar tudo e me certificar que não tinha nenhum buraco. Eu odiava quando chegava no ponto de beber até esquecer - era tão decadente, deprimente. Aos poucos, conforme o sono escorregava de mim, a consciência se organizava e tomava seu lugar. Certo, eu fui para o Madame sozinho, arrumei um cara lá, trouxe ele para casa e nós transamos o resto da madrugada. E foi bom pra porra. Todas as lembranças estavam comigo, eu só precisava organizá-las no final. Abri meus olhos com bastante esforço para contemplar a cor branca do meu teto, acinzentada pela falta de claridade. De um lado da cama, estava lá o cinzeiro com bitucas do meu kumbayá e de cigarros convencionais; do outro lado então deveria estar o Antônio - com sorte ainda sem roupa como eu, para minha apreciação. Mas foi frustrante ver que ele não estava nu. A cama estava vazia, as roupas pelo chão eram apenas minhas, assim como não havia nenhum pertence que não fosse meu. A porta do banheiro do quarto estava aberta e com a luz apagada, vazio. Será que ele estava na cozinha?

Sentei na beirada da cama com a cabeça abaixada entre as minhas mãos. Por que tinha que existir a ressaca? Nem adiantava eu prometer para mim mesmo que nunca mais beberia, ou que não beberia tanto; tinha pleno conhecimento de que seria mentira. Na próxima eu tomaria água entre as doses, pelo menos para desidratar menos e evitar essa sensação de morte. Eu não era mais nenhum jovenzinho de 20 anos, o corpo cobrava o preço. Quando finalmente ergui a cabeça para me olhar no espelho na minha frente, vi algumas marcas pelo meu pescoço e peito, assim como alguns roxos nos joelhos, denunciando que não passei a noite toda na cama. Dor de cabeça não seria a única lembrança física para os acontecimentos anteriores.

Chutei as roupas no chão até formar uma pequena pilha no canto do meu banheiro, escovei os dentes e vesti a primeira cueca e camiseta limpas que encontrei no armário. Ouvi barulho de louça na cozinha e segui com um pouco de pressa. Café da manhã pronto e uma neosaldina não cairiam nem um pouco mal naquele momento. Será que ele tinha simplesmente aberto a geladeira para preparar algo? Era mais fácil só ter me acordado. Mexer na cozinha dos outros é um pesadelo, você nunca sabe o que tem e onde está cada coisa e, dependendo da casa, pode virar uma aventura estrelada por uma pilha de louças sujas (algo que eu não me preocupava, já que a cozinha do meu apartamento estava sempre organizada graças ao Bert). De novo, mais barulhos vindos da cozinha.

— Ah... É você, Bert. Bom dia.

— Bom dia, Gê. Veio buscar café para o Antônio?

Ele olhou para mim, cúmplice, retirando mais duas xícaras do suporte em cima da pia. Ainda era estranho ver Bert em seu novo visual, embora já fizesse um tempo que ele o adotara. O cabelo loiro natural, raspado nas laterais e atrás, com as mechas do topo se estendendo até a altura dos olhos, substituíram o cabelo longo e tingido de preto que usou por anos a fio. O corpo esguio e as camisetas que pareciam baby looks também foram substituídos por músculos não muito grandes (mas bem definidos pela sua frequência assídua na academia) e regatas com laterais cavadas. O que nunca mudou - e nem nunca mudaria - eram seus olhos olhos gentis e seu sorriso largo, sempre receptivos. Agora, entretanto, estes olhos pareciam completamente travessos, conspirando planos para me arrancar respostas.

— Como você sabe o nome dele, Bert? Ele veio aqui?

— Não. Infelizmente não vi a cara dele ainda para poder julgar seus gostos duvidosos. Deve ser outro velho careca igual aquele seu ex. Parecia um dedão. Eu sei o nome do cara porque você não sabe transar baixo, né. Foi só abrir a porta de casa ontem para ouvir vocês dois... Estava boa a coisa, hein, queridão.

Beleza do Caos [FRERARD]Onde histórias criam vida. Descubra agora