I 1.10 Juramento

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Liam correu os olhos pelo salão principal de Shailaja. Localizou Noa e Joshua sem dificuldade, estavam na mesa de sempre, quase no final do ambiente, ao lado da mesa dos tutores. A maioria dos nobres já estava acomodada no salão, que era de pedra, como todos os cômodos da fortaleza escura. A iluminação vinha de tochas que ardiam em cada pilastra e entre as janelas, que eram finas, porém longuíssimas. Ao final de sua extensão, elas formavam um cume afiado como as torres de Shailaja. Os vidros duplos eram fortes, protegiam o salão dos ventos e proporcionavam a vista da praia, mas àquela hora da noite, nada se via através deles. Suas superfícies geladas estavam embaçadas pela mistura de frio e maresia e elas refletiam fracamente o fogo das tochas, dando a impressão de que o salão estava repleto de chamas.

Até aquele momento, Liam jamais havia percebido como o reflexo do fogo poderia ser facilmente confundido com uma mulher. Principalmente, se essa mulher fosse ruiva. Por diversas vezes, pensou que avistara quem procurava, mas logo via que estava enganado. Era apenas mais uma chama brincando com sua expectativa. Decepcionado, caminhou entre as pesadas mesas de madeira até o final do comprido salão e sentou-se ao lado esquerdo de Noa. As mesas do salão principal acomodavam sempre oito pessoas, três de cada lado e duas na cabeceira. Todas estavam dispostas horizontalmente, exceto a mesa na qual se encontrava. A cabeceira de Noa ficava voltada para o restante do salão, o que permitia que tivesse uma ampla visão de todos os nobres. Liam sempre se sentava à sua esquerda, enquanto Joshua tomava à sua direita. Dessa forma, ninguém mais se aproximava do kaal. Esse era o seu desejo. Arriscou um olhar de esguelha para Joshua, que bebia um gole de vinho. Ele levantou as sobrancelhas rapidamente, voltando seu olhar para o salão. Todos os anos era assim. Mal entrava em Shailaja e o humor de Noa afundava, como uma âncora jogada em alto-mar.

- Por onde andava, Roparzh? Achei que estivesse logo atrás de nós – perguntou Joshua casualmente.

- Winoc me deteve. Queria já combinar o treino da semana – respondeu Liam, enquanto, com uma mesura, uma criada servia mais vinho na taça já vazia de Rariff, que estava jogado displicentemente em sua cadeira, com o cotovelo apoiado e a mão esquerda sustentando o queixo. Dois dedos cobriam sua boca e seu olhar, direcionado ao fundo do salão, parecia assimilar alguma informação que Liam não compreendia. Assim como as mesas, as cadeiras eram feitas de madeira pesada e escura, acolchoadas pelo mais fino couro tegalaanês, contornado por dezenas de tachas de prata envelhecida. A cadeira de Noa, posicionada bem no centro do salão, era mais alta que as restantes, pois seu encosto continuava em direção ao teto, terminando em um cume afiado como as janelas de Shailaja.

Tão afiado quanto o olhar de Rariff, pensou Liam, erguendo a sua taça, enquanto avaliava se aquele era um momento ruim ou péssimo para tentar aliciar o herdeiro para o time de combate, do qual ele era o capitão. Todos os anos, Liam fazia essa tentativa, apesar de já saber a resposta de Noa. Enquanto ele era o capitão e Blake jogava ao seu lado em quase todas as modalidades, Rariff evitava qualquer contato com campeonatos em geral. Como Liam sabia do que o amigo era capaz, sempre tentava atraí-lo para as competições, mas Noa estava convencido de que, na sua presença, qualquer jogo justo era inviável. Como era desconfiado!, pensou Liam. O Kaal afirmava que todos tinham medo de machucá-lo e, por isso, não combatiam com garra, tornando tudo fácil demais. Era incapaz de aceitar que, simplesmente, era melhor que os outros. Havia participado dos torneios em seu primeiro ano em Shailaja. Toda vez que ganhava, se irritava, sentindo-se favorecido. Porém, eram poucos que conseguiam derrotá-lo, então ficava frequentemente irritado. Por fim, decidira que treinaria sempre sozinho, ao lado de seus guardas, o que Liam achava uma grande bobagem. Se ele fosse o Kaal, aproveitaria ao máximo. De que adianta ser o herdeiro assim? Pelos deuses! Se ele fosse o herdeiro, desafiaria a todos e faria questão de ganhar todas as vezes.

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