I 1.1 Palacianos, 1133

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Dez anos depois

Noa Rariff despertou com o amanhecer, incomodado com o cântico baixo dos palacianos. Geralmente, aquele murmúrio constante que vinha com os primeiros raios de luz não o incomodava, mas naquela alvorada não seria assim. Ela marcava o início do terceiro dia do terceiro mês do ano e Noa sabia o que isso significava em suas terras: o primeiro dia de Bahija, no mês de Bahija, também conhecido como o Dia da Laranjeira. Maldito Dia da Laranjeira, resmungou.

Irritado, Noa se levantou, afastou as pesadas cortinas e caminhou até a sacada comprida que acompanhava o seu quarto em Palacianos. Apoiou os braços no parapeito e esfregou os olhos. A vista de Palacianos era deslumbrante: os raios refletiam nas ondas que faziam sua dança lentamente pela orla. A areia branca e fina ainda estava encoberta por uma leve névoa, que ficava mais densa onde a mata começava. Nesta direção, estariam os coloridos jardins de Palacianos, com suas flores de mil diferentes tons, plantas exóticas e árvores milenares.

O Dia da Laranjeira era muito celebrado em Palacianos, principalmente porque não havia semente que se cultivasse naquela terra que não gerasse frutos. Noa, que havia nascido em Adij Rariff, uma região fria e seca, jamais conhecera uma terra tão fértil e bela. Todos os anos, passava o final da primavera e o início do verão ali, mas ainda não se acostumara com a atmosfera sulista. A beleza da paisagem, a leveza no andar das pessoas, a fartura na mesa, a facilidade nos sorrisos... Tudo isso o encantava e ele desejava se sentir assim, viver como um palaciano vivia, mais leve que o ar, mas sabia que era impossível. O contraste com a sua alma era profundo, como um corte feito na carne, e ele sabia que seus sorrisos jamais seriam tão gratuitos e seus passos tão leves.

No final da praia, onde já quase não conseguia enxergar, viu um pequeno grupo, todo vestido de branco, caminhando na orla e carregando algo em suas mãos. As mudas, pensou. No dia de Bahija, era tradição plantar uma muda de laranjeira em homenagem a Vashï Bahija, deusa da família e da fertilidade e mãe de todos os filhos que caminham sobre essa terra. Como um bom homem, Noa plantaria a sua muda. Mas teria que ignorar o restante da tradição, como já fazia há dez anos. Este era o dia em que todos os filhos escolheriam um belo presente, branco e imaculado, como os cabelos de Bahija, e o dariam àquela que, de sua carne e dor, o colocara no mundo. Este presente ele não tinha mais para quem dar.

Virando-se contra os raios, caminhou ainda mais pela sacada, sentindo na sola dos pés o frio do mármore branco, entalhado com finos desenhos cor de esmeralda e decorado com pequenas inscrições douradas. Parou na segunda porta, logo após a que dava para o seu quarto, e afastou as cortinas. Sim, ela estava lá, confirmou. Enrolada entre as cobertas, uma mulher alta, de longos cabelos ruivos e cacheados dormia silenciosamente. Era uma cantora, Noa se recordou. Tinha uma bela voz, mas ele admitia para si mesmo que preferia quando estava calada. Não consigo apreciar a apresentação de uma bela mulher, pareço um velho ranzinza, julgou. Ela usara na noite anterior um rico vestido vermelho que agora estava jogado em uma poltrona.

Noa esfregou a testa em um movimento inconsciente enquanto tentava lembrar qual era o seu nome. Talvez... Talvez não tivesse perguntado, chegou à conclusão, por fim. Lembrou que chegara a cochilar ali, ao seu lado, mas não por muito tempo. Nunca conseguia relaxar quando tinha companhia e, por isso, no meio da madrugada entrara em seus aposentos pessoais pela porta de ligação. Mas ela não estranharia esse gesto. Nenhuma mulher esperava dormir em sua cama. A ruiva fez um movimento lânguido com os braços e passou uma perna comprida por cima do cobertor, mudando de posição. Imediatamente, Noa fechou a cortina. Melhor que durma, decidiu, hoje não estou no meu melhor humor.

Voltou para seus aposentos determinado a acabar com aquele dia o mais rápido possível. Entrou na sala de banhos, e deixou que seu corpo relaxasse numa redonda banheira palaciana, toda de granito verde escuro com pequenas hematitas incrustadas em sua margem. A água era fria, quase gelada, como era a sua preferência. Como um nortenho típico, era impossível para Noa se acostumar com o calor de Palacianos. Depois, se enrolou em uma toalha azul marinho, a cor dos Rariff, e vestiu uma calça leve, uma blusa fresca e um colete. No seu indicador direito, em um anel de prata, brilhava a enorme safira dos Rariff. Noa a contemplou por alguns instantes, pensando em seus pais, na família que perdera e em como aquela pedra não combinava em nada com Palacianos, suas cores claras e seus adornos dourados como os raios de Amandeep.

Naquela região, todos sabiam que os raios que iluminavam Adij Alim eram os fios de cabelos da Vashï Amandeep, criada por Vïc Alim, aquele que tudo sabia. Noa se perguntou se Alim também soubera que os fios de Amandeep prefeririam iluminar Palacianos a brilhar sobre sua terra natal, Adij Rariff. Talvez por isso, Noa amasse Palacianos mais do que a sua própria terra. Porém, por mais que tentasse, não se sentia em casa ali. Não mais. Um dia, cavalgara sobre a areia fina da praia aos risos e brincara de se esconder atrás das grossas pilastras cilíndricas do Palácio, colhera frutos direto do pé nos jardins internos e deixara que os fios de Amandeep esquentassem seu corpo enquanto se balançava nas grandes redes entre as árvores. Mas tudo isso acontecera há mais de dez anos e Noa sabia que jamais voltaria a se sentir assim. Agora pareço um velho deprimido, pensou.

Decidido a evitar que o Dia da Laranjeira o afogasse em autopiedade, saiu de seus aposentos, desceu uma larga escada, passou por um alto portão dourado, com milhares de inscrições delicadamente traçadas em relevo, e, desejando bom dia aos guardas palacianos, caminhou entre as palmeiras até o primeiro jardim externo. Ali, logo na entrada, se via uma pilha de pequenas mudas de laranjeira. Escolhendo uma ao acaso, foi até as cocheiras, montou em seu cavalo e cavalgou até o mais longe que pôde pela orla, na direção de sua terra natal, Adij Rariff. Quando os raios de Amandeep estavam no alto de sua cabeça, ele parou e, encontrando um lugar apropriado no início da mata, plantou ali a pequena muda, sua homenagem a Vashï Bahija, deusa da família, e agradeceu por um dia ter tido pai, mãe, irmão e irmã. Depois, retornou pela orla, fazendo apenas uma parada para dar um mergulho no mar. Quando não havia mais como adiar, entrou no Palácio para encontrar o que restara dos Nolween Rariff e atender ao almoço em família, parte mais terrível da tradição do Dia da Laranjeira. 

~*~

Glossário desse capítulo:

* Amandeep: deusa do Sol

* Bahija: deusa da família

* Palacianos: região que era o reino dos Maël e foi invadida e ocupada pelos Rariff

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