O último compromisso do dia de Hannah foi uma interminável lição de costura, na qual ela realmente aprendeu alguma coisa. Claro, não sabia nada sobre costura. Pelos deuses, elas não eram nobres? Jamais precisariam costurar coisa alguma. Mas Hannah guardou esses pensamentos para si enquanto tentava espetar a agulha e fazer os movimentos corretos a fim de fazer um bordado bom o suficiente para que não passasse mais vergonha do que já estava passando.
Como se não bastasse ser – de longe – a aluna mais velha entre elas, ainda não sabia fazer nada do que essas lições pediam. Na lição de História, não podia abrir a boca, porque, é claro, a história ensinada na nobreza Rariff, definitivamente, não era a história ensinada na Ilha. Ah, Hannah conhecia história. Pelos deuses, ela era a própria história, andando e respirando e se abrisse a boca para contestar algo tinha a impressão de que jamais se calaria, por isso ficou muito focada em não emitir nenhum som durante duras horas.
Na lição de dança, ela fingia não saber dançar, afinal com quem uma moça criada na fazenda teria dançado? O mesmo se passava nas lições de canto. Esperava que essas mocinhas não precisassem cantar para conquistar um marido, porque estariam todas – e ela podia jurar que eram todas! – perdidas. Em Literatura, ela até participara. Até uma moça da fazenda poderia ter acesso a livros.
Ao final de todas essas atividades extremamente maçantes e sem ter tido uma conversa agradável com ninguém – nenhuma das calouras ousava lhe dirigir a palavra, nem mesmo os tutores – Hannah estava exausta e ao mesmo tempo cheia de energia. Era possível isso? Ela sentia que precisava extravasar. Estava acostumada a uma rotina muito agitada. Pela manhã fazia um longo e desgastante treinamento na areia. Corria e depois nadava no mar. Em seguida, agendava reuniões com conselheiros, respondia sua correspondência, encontrava aliados. Na parte da tarde, era a hora do seu treinamento de dança, sua turma...
Ela estava em Shailaja há menos de um mês, mas sentia falta das suas pupilas. Desde os 15 anos, ensinava os primeiros passos de dança às crianças pequenas da Ilha. O que diriam as pequeninas se pudessem vê-la fingindo ter dois pés esquerdos nas lições de Shailaja? Sentia falta da dança, de conversar com outras pessoas, mas principalmente do seu cavalo...
Mas logo anoiteceria e ela já descobrira o caminho para as cocheiras. Caminhou rapidamente, evitando os nobres que se dirigiam para a sala de chá. Os raios já estavam fracos no horizonte e uma dama não poderia sair sozinha... Tomou as precauções para que não fosse flagrada. Pegou o caminho por entre as árvores e, chegando às cocheiras, escolheu o cavalo mais negro que encontrou. Assim, seria mais difícil que alguém a visse. Tirou sua sela e a deixou de lado. Tocou na penugem macia entre seus olhos enquanto fazia contato visual. Devagar, passou a mão pelo seu pelo e com um leve salto, montou. Observou enquanto os raios se punham e saiu devagar até chegar à areia da praia. Encostou em sua nuca com delicadeza e pensou em suas coxas e pernas fortes e nos cascos batendo contra o chão. Hannah desejava correr e ele correu até que ela sentisse lágrimas provocadas pela força do vento em seus olhos.
Como todo palaciano, Hannah amava cavalgar. Seu povo tinha uma ligação especial com os cavalos e podiam controlá-los como se fossem uma extensão do seu corpo. Quando diminuiu o ritmo, a lua já brilhava. O barulho das ondas, apesar de bem mais revoltas que na Ilha, lembrava a sua casa e ela quase podia imaginar que estava lá. Quase. Os ventos gelados a faziam tremer e ela odiava passar frio.
Deixou o cavalo na cocheira e passou com cuidado pelos corredores. Não poderia jamais ser vista a essa hora fora do seu alojamento. Era totalmente contra as regras para as damas. Mas, apesar de já passar da meia-noite, ainda havia homens no salão de jogos. Era preciso tomar cuidado. Quando entrou pelo corredor que dava para o Mavi, imaginou se ainda haveria alguém no salão, mas sabia que era improvável. Abriu a porta devagar e viu o ambiente totalmente às escuras. Suspirou e já ia subindo as escadas, quando ouviu uma voz grave atrás de si.
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O Portal | Livro 1 - Degustação
FantasíaEles assassinaram sua família, roubaram sua coroa e amedrontaram seu povo. Por dez anos, Hannah se escondeu, mas agora está de volta, morando na fortaleza do inimigo e cada vez mais próxima de Noa Rariff, o herdeiro que, um dia, assumirá o trono dos...