II 2.1 Ameaça?

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Já passava do meio da madrugada e Noa não conseguia dormir. Maël estava bem ali em Shailaja. Ele não a via há anos. Era tão diferente do que imaginara. Não a reconheceria se passasse cem vezes na sua frente. Precisava admitir, no entanto, que quando a vira pela última vez ainda era uma criança... Concluiu que sua memória lhe pregara uma peça, mas, mesmo assim, ainda pensava em como seus traços pareciam diferentes. Algo o incomodava. Ela parecera tão assustada. Deveria estar mesmo, não era? Acabara de sobreviver a um ataque. Se os boatos fossem reais, vivia numa fazenda, longe de qualquer contato com a nobreza. Não estaria acostumada com a sociedade... Os primeiros dias em Shailaja já eram suficientes para deixar qualquer jovem assustada. Porém Maël não só estaria com todos os nobres ligados aos Rariff, como ainda era uma pária. Não conhecia ninguém, não tinha relações, nem terras, nem herança. E ainda era considerada uma ameaça aos Rariff. Era uma inimiga de todos.

Yezekael o repreenderia por esse pensamento. Dizia sempre que Noa, como o herdeiro que era, deveria evitar esse tipo de raciocínio. Mas ele não conseguia. Como kaal, se sentia tão distante de tudo e de todos, tão distante da vida real. Então, tentava imaginar como seria viver como outra pessoa. Quando ainda era criança, escolhia um criado do castelo e o perseguia durante semanas. Aprendia seu horário de acordar, o observava enquanto fazia suas tarefas diárias. Na hora de ir para cama, ficava imaginando o que o criado estaria fazendo. Uma vez, saiu de fininho do seu quarto e se escondeu na cozinha. Esperou enquanto Maria José terminava seu serviço e a seguiu até sua casa na vila. Dormiu na cozinha de seu casebre à beira do rio, escondido. Quando foi encontrado, na manhã seguinte, foi levado pelos guardas até sua babá da noite, que já estava aos prantos imaginando que morte teria por perder o herdeiro.

Maria José. Ele se lembrou dos doces que ela havia feito para Hannah. Iria entregá-los. Seu tio não poderia descobrir, diria que era uma tolice sua. Além de um erro grave. Ela era o inimigo. Para quê haveria de saber que ainda era lembrada pelos palacianos? Melhor que pensasse que estava esquecida, que jamais teria apoio se fizesse uma tentativa de recuperar seu trono. Zezé o conhecia bem, mas tinha arriscado sua vida ao sugerir que levasse os doces. Pedir qualquer coisa a Noa já era um desrespeito à sua posição. Mas pedir a um herdeiro que levasse uma cesta de doces para sua inimiga... Era uma loucura. Pensando nisso, Noa não pôde evitar um sorriso. O atrevimento de Zezé o deixava estranhamente satisfeito. Era um sinal de confiança, de intimidade. Ele adorava quando as pessoas o surpreendiam com esses gestos, o que era raro.

Odiava o receio que causava nas pessoas, a formalidade com que era tratado, os olhares furtivos quando passava. Ele inspirava medo. Seu tio, grande estrategista, conquistador de terras, havia massacrado inimigos e ampliado o domínio dos Rariff, principalmente, inspirando o medo. E Noa era o herdeiro desse domínio e, consequentemente, o herdeiro do medo. Até mesmo os nobres que eram seus aliados o temiam. Voltou a pensar em Hannah. O que ela deveria sentir em relação a ele? O jeito que ela o olhara mais cedo... Ele viu o medo em seu olhar, tinha certeza. Estava tão insegura que mal conseguia falar. Mas, também, poderia ser o efeito do ataque. Ou tudo junto.

Com calor, ele se levantou da cama e caminhou até a enorme varanda. O mar batia revolto nas pedras, mas a orla estava tão escura que mal se via as ondas. Como sempre a essa época do ano, a ressaca era forte em Shailaja. O vento frio roçou em seus braços e ele se sentiu aliviado. Na varanda, se deitou em uma longa poltrona, sentindo a brisa contra a sua pele. O dia seguinte seria cansativo, mas não havia o que fazer, já que não conseguia dormir.

Um movimento à esquerda chamou sua atenção. Havia mais alguém nas sacadas. Cada quarto ostentava uma varanda. A construção na pedra, no entanto, não era regular. Após o seu quarto, a construção entrava mais na montanha. Um pouco mais adiante, fazia uma suave curva. Seu olhar seguiu pela curva enquanto buscava o movimento. Noa se concentrou. Quem quer que fosse estava escondido nas sombras. Ele contou as bancadas. Quatro. Seu quarto era o primeiro da ala direita. À esquerda, estavam os quartos da ala feminina. Não havia ninguém na primeira, nem na segunda varanda, ele conseguia ver claramente.

Olhou fixamente para a terceira varanda. Havia uma sombra naquela sacada, mas era impossível distinguir quem era sem iluminação. Mas estava certo de que via uma pessoa apoiada. Estaria olhando o mar? De repente, a figura ficou ereta. Fora notado. Sentiu o peso do olhar do vulto o encarando até que, com passos rápidos, ele entrou no quarto.


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