Hannah caminhou até o escritório de Raoul. Já se despedira de todos na Ilha. Bateu à porta e o velho mestre abriu, mas estava diferente. Algo nele estava estranho, mas ela não sabia...
- Ah, olhe só! Essa senhorita deve ser minha companheira de viagem, não é mesmo? É um grande prazer conhecê-la, sabia?
- Hannah, este é Enzo, meu irmão, como você já sabe – anunciou Raoul, do fundo de seu escritório.
Claro, o irmão de Raoul. Como eram parecidos! Enzo, no entanto, era mais simpático, sorridente. Agora, ela reparava que ele tinha uma barba mais longa e parecia uns dez anos mais velho que Raoul. Pelos deuses! Quantos anos teria?
- Muito prazer - disse apenas. Ela entrou no cômodo e caminhou até o Qayid que, sem tirar os olhos do mar da Ilha, lhe deu as últimas instruções.
- Hannah, sobre a sua viagem: Enzo veio tratar alguns últimos detalhes comigo. Vocês podem seguir juntos para Shailaja. Já está tudo providenciado – Com Raoul era sempre assim: direto ao ponto.
Enzo foi até o irmão e lhe deu um abraço. Hannah desviou o olhar. Nunca vira Raoul abraçar ninguém. Enzo abriu a porta.
- Depois da senhorita.
Como Raoul não lhe dignara nem um olhar, seguiu Enzo pelo corredor sem se despedir. Era tão alto quanto o irmão e caminhava a passos largos. Usava uma longa veste bordô, muito parecida com a que Raoul costumava vestir. Saíram pela porta lateral do casarão e caminharam pela areia fofa. Um pequeno barco aguardava no porto. Quando se aproximou, viu que Gaetana estava à sua espera. Ela cumprimentou Enzo.
- Ah, Gaetana. Muito bom visitá-los, como sempre. Creio que vamos nos ver muito daqui para frente. Vou entrar para deixar vocês à vontade - disse Enzo cordialmente.
Depois que ele entrou, Gaetana pegou as mãos de Hannah entre as suas.
- Mani, por causa do disfarce, pedimos para que não levasse nada seu. Vejo que cumpriu essa tarefa – disse, com um sorriso, segurando o seu indicador. - Quando eu era pequena, minha mãe me deu esse anel, que uso sempre. É bem mais simples... – Hannah olhou para a mão de Gaetana. Era um anel dourado, com um pequeno brilhante. A mestra tirou um saquinho do bolso. – Por isso, pedi que Leila fizesse um igual para você.
Surpresa com o gesto, Hannah sorriu e abraçou Gaetana. Desde que era pequena, a mestra se responsabilizara por ela. A criara como uma filha e ela era muito grata por ter sido acolhida tão calorosamente.
- Sei que já passou por momentos mais difíceis que esse, Mani. Mas também sei que não será fácil enfrentar essas pessoas por tantos meses. Peço que tenha paciência e lembre-se de que não está sozinha, está bem?
- Está bem – assentiu Hannah, colocando o anel no seu dedo médio: - Obrigada.
O pequeno barco saiu lentamente da orla e Hannah arriscou um último olhar para o casarão à beira-mar, que era o único lar que conhecia desde a queda de sua família. Contemplou a construção branca, exceto pelas suas janelas azuis e pelas portas amarelas, e o imenso ipê cor de rosa bem à frente da porta principal. Ele chegava a ser mais alto que o próprio casarão, que não tinha mais que dois andares, e derramava suas flores coloridas na grama verde. Era um lugar lindo, mas não fora pela sua beleza que a Ilha havia ganhado a sua confiança. Nem por Raoul, que era um grande aliado de sua mãe. Ela não sabia disso quando chegara ali. Nem por Gaetana, a quem hoje amava como a sua própria família. Ela correu os olhos pela areia, buscando por ele, mas sabia que não iria encontrá-lo. Se ele estivesse ali, Hannah sentiria sua presença, preenchendo todos os espaços, confiante e firme, fazendo com que se sentisse segura, como uma onda de calor no auge do verão.
Mas, nos últimos meses, esse calor havia aumentado, fazendo com que se sentisse quase sufocada e, por vezes, pensara que ele a queimaria com sua proximidade. Porém, antes mesmo que refletisse sobre esse novo sentimento, Raoul o havia afastado. E ele fora enviado para longe, por meses. Desde que era pequena nunca passaram tantos meses separados. E agora, ali estava ela, partindo, sem sequer saber quando voltaria a vê-lo. Havia se despedido de todos na Ilha, menos de quem a levara até ali. Será que Luc a perdoaria por escolher esse caminho? Será que ele a perdoaria por ir para Shailaja?
Uma onda violenta deu fim ao seu devaneio. O mar era tranquilo perto da Ilha, mas ela sabia que aquela maré calma era obra de um encantamento antigo, pois a Ilha ficava no meio do mar revolto, onde as ondas eram altas e furiosas. Era preciso um capitão com muita experiência para navegar ali.
- É sempre uma aventura vir aqui – comentou Enzo com um sorriso nervoso.
Hannah sorriu de volta. Não sabia o que responder, então não disse nada.
- Se bem que estando com você, estou protegido não é mesmo? – Pelo jeito, ele quer conversar, pensou Hannah, e respondeu assegurando-lhe que não havia com o que se preocupar.
Não demorou para chegarem à orla. Uma carruagem pequena os esperava. Era puxada por dois cavalos e tinha dois condutores. Enzo se ofereceu para ajudar com a mala, mas Hannah prontamente recusou. Uma vez dentro da carruagem, o caminho era longo e Enzo continuava determinado a manter uma conversa. Como era bem-humorado quando comparado a Raoul!
- São pelo menos umas cinco horas só nessa estrada e depois... – Hannah já sabia o caminho, mas deixou que ele o descrevesse. Procurando algo para dizer, teve a ideia de perguntar sobre ele.
- O senhor está lá há muitos anos, não é mesmo?
- Ah sim, há 20 anos sou tutor em Shailaja...
- E como é lá?
- Ah, muito diferente da Ilha, com certeza... O tempo não é tão bonito, isso posso garantir...
Hannah olhou pela janela. Já não dava para ver a Ilha dali.
- Quero lhe agradecer pelo que está fazendo.
Ela foi pega de surpresa. O que ele queria dizer?
- Eu pedi a meu irmão que mandasse você. Sei que é sua melhor arma. É a nossa maior chance de mantê-lo vivo.
Ela o avaliou por um instante. Seria por isso que estava sendo tão simpático?
- Não tem o que agradecer – Ela não queria parecer grosseira, mas era o que podia dizer. Não estava fazendo aquilo para ajudá-lo, nem por uma ordem de Raoul, mas não diria isso a Enzo. Pelo jeito, o irmão deixou que achasse que um pedido seu estava sendo atendido.
Enzo passou os dedos longos e negros pela barba branquíssima. Era o meio da tarde. Fazia calor e a carruagem seguia por uma estrada sem sombras, sacolejando num ritmo nauseante.
- Sei que deve ser difícil para a senhorita, mas ele é um bom garoto. Não tem culpa do que aconteceu. Não tem ideia...
- Homem – Hannah interrompeu.
- Desculpe, o quê? – perguntou Enzo, voltando-se para ela.
- Ele já é um homem. Não é mais um garoto.
Enzo a observou com curiosidade. Sempre quisera conhecê-la. Diante de uma ruptura como a que acontecera com o ataque há dez anos, era curioso como Raoul acolhera Hannah e ele se tornara o tutor de Noa. Há anos, ele ouvira boatos sobre ela. Era difícil acreditar neles quando se via uma criatura tão pequena. Mas sua fama percorria regiões longínquas. Era respeitada por líderes. Sua presença amedrontava exércitos. Como poderia ser tão pequena? Enzo sabia que aquela não era sua aparência real. Mas Gaetana havia dito que a altura era verdadeira, além de outras características. Os olhos e cabelos eram castanhos como os de todos os palacianos. Filhos de Anandi, pensou Enzo. O nariz lembrava Merab, mas não encontrou outras semelhanças.
- Entendo seu ponto, Noa é um homem. Saberá de tudo quando for a hora.
Ela não respondeu. Enzo entendeu que a conversa estava encerrada. Ela protegeria seu garoto, era isso que importava.
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O Portal | Livro 1 - Degustação
FantasiaEles assassinaram sua família, roubaram sua coroa e amedrontaram seu povo. Por dez anos, Hannah se escondeu, mas agora está de volta, morando na fortaleza do inimigo e cada vez mais próxima de Noa Rariff, o herdeiro que, um dia, assumirá o trono dos...