II 2.6 Covarde

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Naquela noite, Daria encontrou a mãe já em seu quarto. Bateu à porta de leve antes de entrar. Verónique Ainsley se preparava para dormir. Já usava uma longa camisola cinza. Os cabelos, que passavam os dias presos no coque apertado, agora formavam uma trança frouxa que caía pelo seu ombro esquerdo. O quarto da mãe era bem mais amplo que o de Daria e ficava na ala dos tutores. Ao lado da mesinha de café da manhã, o quarto tinha uma grande parede de espelhos e uma barra de ferro, como um estúdio de dança improvisado. Todas as manhãs, Verónique se aquecia e cuidava para manter a forma.

- Daria, querida. Boa noite.

- Mamãe - cumprimentou a filha.

- O que faz aqui tão tarde? - perguntou a mãe, apressando-se para servir uma xícara de chá para cada uma.

- Não estou com sono, pensei que poderíamos ler algo juntas - disse Daria.

- É claro, querida. Beba esse chá de erva doce, que vai ajudá-la a dormir.

Era estranho ter lições com a mãe. Ainda mais quando sua mãe era uma tutora tão rígida. Daria sentia falta da intimidade que dividiam quando estavam sozinhas. Tomou um pouco de chá e relaxou a postura na cadeira, aguardando o momento em que Véronique certamente a corrigiria.

- Tem tido notícias de Aydan, mamãe?

- Ah, sim. Recebi uma carta de seu irmão esta manhã. Tudo corre bem.

Conversaram sobre a família e o frio em Shailaja, até que um comentário da mãe a surpreendeu.

- Não se saiu mal hoje na lição de canto, filha.

- Ahn... Obrigada?

- É claro que pode melhorar ainda...

Daria não via como poderia melhorar ainda mais. Era uma péssima cantora, errava as notas, sentia a garganta doendo quando cantava, não conseguia manter a postura nem fingir emoção. O único motivo para não ter sido um desastre total era que a mãe a obrigara a treinar incansavelmente durante o verão. Mas agora sentia que atingira o limite de suas habilidades. Já que estavam nesse assunto, Daria lembrou da senhorita Maël e de como a mãe fora estranhamente benevolente com a rani.

- Mamãe, por que liberou Hannah Maël hoje da lição? - perguntou Daria.

- Não a liberei. Ela se recusou a participar da lição, filha.

- Foi apenas por isso? Achei que a senhora insistiria mais...

A mãe bebeu mais um gole de chá e disse:

- Gostaria de ter insistido... Mas não tive coragem.

- Coragem, mamãe?

- Até eu tenho meus limites, filha.

- A senhora acredita que ela não saiba dançar nem cantar? Ouvi dizer que a mãe era uma grande dançarina...

- Foi criada em uma fazenda, onde aprenderia?

Daria achou que o assunto estava encerrado. Pegou um livro, passou uma manta pelas pernas e começou a ler, mas não passou da primeira página até ouvir a voz baixa da mãe. Ainda segurava a xícara de chá, porém esta parecia esquecida entre seus dedos. Ela tinha o olhar perdido na estranha dança das chamas que ardiam na lareira. 

- Quando era apenas uma menina boba, estive aqui em Shailaja como você, filha... Merab estava um ano à frente... Tive a honra de vê-la em plena forma.

- Merab? Mamãe, quem é Merab?

- Merab se tornou a Rana de Palacianos... Era mãe de Hannah.

Daria arregalou os olhos e fechou o livro.

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