I 1.3 Dia da Laranjeira

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Rariff acordou bem depois da aurora. Quando estava em Palacianos, esse era o horário usual. Pena que faltavam tão poucos dias. Não queria voltar. Estava farto de Shailaja. Para que precisava ir? Já não ia ser um Kral? Lembrou-se que estavam no ano da Cerimônia e enrolou um pouco mais na cama, puxando os lençóis azuis escuros, no mesmo tom das longas cortinas que impediam a claridade de entrar. Com os olhos ainda pesados, contemplou seu quarto em Palacianos e pensou, mais uma vez, em como nada parecia certo. As cortinas, os lençóis e os estofados nas cadeiras eram as únicas coisas escuras naquele cômodo envolto por paredes claras sobre o chão de mármore branco, verde e dourado. À sua frente, uma rica cômoda pintada à mão ostentava finos detalhes que imitavam os galhos de uma trepadeira de ouro. Sobre ela, estava um pequeno espelho, rodeado por dezenas de compridas tiras recheadas de pedras preciosas que brilhavam alegremente como raios, derramando feixes coloridos por todo o canto. Noa olhou para cima e contemplou o teto, onde, com um pincel finíssimo, algum artista habilidoso havia desenhado antigas inscrições. As letras eram rebuscadas e contínuas, como pequenas ondas do mar, formando um grande círculo de palavras que podiam ser vistas de todo o ambiente. Mas Noa, assim como todos que ali viviam, não sabia o que elas significavam.

Sentando-se na cama, apoiou-se nos travesseiros e observou como os feixes coloridos refletiam estranhamente no comprido castiçal de prata que estava na mesinha de cabeceira. Mais um item colocado ali que em nada combinava com Palacianos. Azul e prata eram as cores dos Rariff, uma família milenar e próspera, da qual Noa era o único descendente. Seu tio Ür era o Kral desde que Noa tinha apenas onze anos, desde o dia em que seus pais morreram.

Ouviu uma batida à porta.

- Rariff, acorda.

Sem cerimônia, Liam Roparzh abriu a porta dupla da antessala de seus aposentos e largou-se em uma grande poltrona de couro macio. Jogou os longos cabelos loiros para trás e colocou as pernas sobre a mesa de centro.

- Vamos tomar café? Trouxe sua correspondência - anunciou.

- Vou só dar um jeito nessa barba - respondeu Noa, enquanto se dirigia à sala de banho. Deixou a porta entreaberta, porque sabia que Liam era incapaz de esperar sem fazer seus costumeiros comentários...

- Você não acredita em como a noite terminou ontem...

- Por que você não me conta?

- Que tal um palpite?

- Posso adivinhar que não dormiu sozinho...

- Claro que não! Recebi a visita da condessa viúva...

- Você não tem jeito, Roparzh.

- Eu? Você que não tem jeito, fica aqui trancado, um monte de mulheres por aí querendo conhecer o futuro Kral!

- Futuro Kral! Meu tio ainda vai reinar por muito tempo, não quero nem pensar nisso.

Noa pegou a navalha e avaliou as críticas de Liam. Na verdade, não é que ele não gostasse de atender aos bailes. Era uma grande injustiça de Liam, ele fora, inclusive, na noite passada. Mas realmente, sempre que conhecia alguém sentia que seus modos não eram originais. Sua posição intimidava a maioria das pessoas e ele percebia o ar afetado, a conduta ensaiada... Além disso, seu interesse não durava mais de uma noite. Liam, pelo contrário, se interessava demais.

- Rariff, você viu essa história aqui no semanário de notícias? Sobre você?

Noa suspirou. Uma vez por semana, recebiam o semanário de notícias. Era escrito à mão e não trazia muitos detalhes, mas era uma boa forma de comunicação entre os clãs. Muitas vezes, o semanário chegava atrasado, pois sua entrega era feita por mensageiros. Pensando bem, Noa percebia que dessa vez havia demorado bem mais de uma semana para chegar. Por isso, na maioria das vezes, as notícias eram antigas e sem relevância, o que fazia com que se tornasse, cada vez mais, apenas uma fonte de fofocas bobas entre as cortes. Pediu aos deuses paciência para lidar com mais uma enxurrada de calúnias.

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