"Bom é para o homem suportar o jugo na sua mocidade.
Assente-se solitário e fique em silêncio; porquanto Deus o pôs sobre ele.
Ponha a sua boca no pó; talvez ainda haja esperança.
Dê a sua face ao que o fere; farte-se de afronta.
Pois o Senhor não rejeitará para sempre.
Pois, ainda que entristeça a alguém, usará de compaixão, segundo a grandeza das suas misericórdias." (Lamentações 3:27-32)Aquela foi uma noite longa. Naquela sala vedada subterrânea, Anastasia encolhera os joelhos e se encostara na parede fria. Muitos dormiam no recinto lotado e os corpos cobriam o chão a ponto de não ser possível andar.
Contudo, ela não dormia — havia dormido na caverna em que estivera com Hansuke por algumas horas e, à noite, estava sem sono. Mas não era só por aquele motivo, é claro. Havia algo aumentando a temperatura de seu coração aos poucos, como uma panela sobre fogo baixo. Ela sequer viu a temperatura subindo, sequer viu chegando ou começando — e agora já estava quente demais lá dentro. A temperatura aumentava sem parar, isso se fosse parar. Era... assustador. Também era divertido sentir seu coração disparar e sentir as descargas súbitas de vontade de sorrir. Mas, sobretudo, assustador. Poderia se queimar. E era aí que tudo piorava, porque havia algo que ninguém sabia: já havia se queimado. Muito, muito tempo atrás. Seis anos antes, na Inglaterra, quando ela tinha apenas 15 anos. E, céus, havia sido feio.
De quando em quando ela olhava para Hansuke de relance. Entre ela e ele havia pelo menos dez pessoas deitadas, todas adormecidas. Anastasia era a única acordada no recinto. Naquela noite específica, seu coração estava apertado. Ele estava dormindo sentado, a roupa suja de terra. Céus, como queria poder fazer mais por ele além de ser um fardo para ele. Era uma mulher de 21 anos, não poderia ser mais tão impulsiva como fora mais cedo. Se ela pudesse, de qualquer forma, tornaria aquilo menos difícil para ele.
Se ela pudesse e não se intimidasse, não permitiria que sua cabeça descansasse naquela parede de pedras frias, e frio de inverno — o frio que ela estava sentindo encostada naquela mesma parede. Ela colocaria sua mão sob a cabeça dele, segurando todo o peso enquanto ele descansasse. Sentiria os fios pretos e longos se enrolando em sua mão. Deixaria que ele jogasse a cabeça para trás e dormisse em paz pelas horas que quisesse, e ela seguraria todo o peso imóvel durante a noite. Ela tiraria de sua face os fios de cabelo preto que insistiam em se enrolar ali, para que ele não se incomodasse com coisa alguma durante a noite. Ficaria imóvel até o amanhecer ou até que os braços delas adormecessem e cedessem ou pelo tempo que fosse.
Ela sentiu seu rosto queimar ante aquele pensamento e desviou o olhar dele. Sua respiração estava alterada e seu busto subia e descia exageradamente. Ela havia conhecido um sentimento parecido com aquele antes. Ou o mesmo... já fazia tanto tempo, ela não sabia mais dizer. E havia doído tanto.
Seria sábio se arriscar? Ele nem sequer era daquele país, quem saberia dizer o que o futuro traria? E se ele fosse embora? E ela não iria, não podia... havia prometido a si mesma que aquilo nunca mais iria acontecer. Nunca mais, sob aquele céu, iria sentir tamanha dor. Por mais que renunciasse a paixões e pessoas.
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Kintsugi
SpiritualSe eu dissesse que todos ainda podemos ser felizes, você acreditaria? Acreditaria que apesar das decepções, desilusões, pecados e abusos inimagináveis, todos ainda podemos ser completos? Pois eu posso lhe contar uma história em que isso aconteceu: u...