"Eu tenho sido frio e impiedoso
Mas o sangue em minhas mãos
me assusta até a morte
Talvez eu esteja acordando hoje" (Jaymes Young - I'll be good)
O dia já estava próximo do fim quando Laura chamou Anastasia novamente, pedindo que levasse mais flores ao hospital. O pedido, dessa vez, era diferente: era um serviço à comunidade, não uma encomenda. Ela tinha, em suas mãos, uma cesta de rosas brancas. Deveria depositá-las em alguns quartos selecionados, pois ali estavam pessoas que precisavam para consolo, para ajuda, para esperança, para despedida. Laura lhe falou a lista e ela partiu de volta para o mesmo lugar.
Logo na porta, não pôde deixar de reparar a movimentação: havia mais médicos. Encostou a bicicleta na parede e tomou a cesta, entrando no hospital. Tinha quartos certos para visitar, os números decorados na cabeça, e não se deixaria distrair na última tarefa do dia, nem pelo corredor principal, que estava lotado pelos soldados feridos que chegaram nas embarcações (e pelos médicos).
Hansuke saiu cabisbaixo da sala em que estava. Os japoneses haviam chegado há algumas poucas horas e já haviam sido levados para o hospital, onde entraram em procedimentos em andamento ou iniciaram novos. O jaleco branco e aberto balançava conforme ele andava, revelando a roupa preta por baixo — a qual não tivera sequer tempo de trocar. Estava cansado, mal acabara de chegar e já estava cansado. A guerra ininterrupta era cansativa demais.
Hansuke Hirai: ex-soldado, ex-médico de combate, atualmente médico da Cruz Vermelha. Lutara antes e durante a faculdade, então, após, passara a atuar como médico: mas jamais deixara o combate. Ele pensava que era um destino selado. Descendente de uma linhagem de guerreiros — os extintos samurais — sua família muito se orgulhava das altas posições militares. Ele, contudo, permanecia no campo. Porque era o único lugar em que fazia sentido estar guerreando. Estar em paz em uma sala enquanto soldados lutam em seu nome sempre lhe pareceu a coisa menos guerreira a fazer, se é que guerrear era mesmo seu destino. Somado a isso, ainda que estivesse "destinado" à batalha, sempre preferira curar. Ser médico de combate parecia, portanto, a melhor opção.
E havia desempenhado a função com maestria nos últimos anos nos constantes embates japoneses. Até os vinte e sete anos salvara incontáveis vidas nos campos de batalha, mas justamente em meio a uma batalha fora convocado para outra coisa: viajar com a Cruz Vermelha japonesa para a Ilha de Malta, a Enfermeira do Mediterrâneo, para auxiliar os aliados no centro da Grande Guerra de 1914.
Hansuke passou a mão direita pelos cabelos pretos que quase chegava perto dos ombros, com uma ou duas ondas por todo o comprimento, tirando-os da frente dos olhos. Finalmente ergueu o rosto, bem a tempo de ver uma moça de cabelos castanhos passando por ele. Era mais baixa, tinha certeza que toda a sua estatura não batia nem no ombro dele. Ela tinha cabelos castanhos e ondulados, longos, que voavam livres conforme ela andava. Os olhos, de tal forma escuros e combinando com os cabelos escuros, contrastavam com a pele. Estava com um vestido azul (!) e carregava... uma cesta de flores?
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Kintsugi
SpiritualSe eu dissesse que todos ainda podemos ser felizes, você acreditaria? Acreditaria que apesar das decepções, desilusões, pecados e abusos inimagináveis, todos ainda podemos ser completos? Pois eu posso lhe contar uma história em que isso aconteceu: u...