Para que entenda tudo, minha sina não tem início neste momento. Ela começa no passado, quando ainda era uma criança.
Devia estar com uns quatro anos de idade quando esse pesadelo começou. Na escola, uma garota mais velha me machucou e, sem sequer encostar o dedo nela, arremessei-a longe. Como fiz isso? Pergunto-me até hoje.
Depois deste episódio, meus pais tiraram-me da instituição de ensino e passei a ter aulas em casa. Afastei-me das pessoas, não tinha amigos e nem saía para passear. Sequer via meus parentes.
Comecei a viver sozinha, mas os acontecimentos estranhos não me deixavam em paz. Quanto mais velha eu ficava, mais eles aconteciam. Era como se algo estivesse preso dentro de mim e, com o passar dos anos, cada vez mais quisesse sair, cada vez mais precisasse sair.
Era sufocante! Desesperador...
Aos cinco anos, fiz um corte no braço de mamãe sem ter uma faca em mãos. Aos seis, explodi meu passarinho com um olhar. Com sete, evaporei a água da piscina do nosso quintal com um sopro. E aos oito anos, ela começou. Uma voz surgiu em minha cabeça e passou a acompanhar-me.
Se eu pensasse "por que sou tão diferente?", a voz respondia-me: "você não é diferente, é especial!"
Contei tudo para meus pais, e então minha mãe enlouqueceu. Enquanto papai pensava racionalmente sobre o que fazer e sussurrava em meus ouvidos todas as noites antes de dormir que tudo ficaria bem, sua esposa tinha um ataque de nervos a cada vez que chegava em casa com uma história nova. Antes das consultas com o psiquiatra que começara a visitar, recebia um sermão escondido no banheiro sobre omitir certas coisas desnecessárias, contar o menos possível, "porque a hora de um psiquiatra é coisa cara, e não podemos abusar no tempo gasto falando besteiras".
Nas primeiras consultas, ela ficou a meu lado, e tentava aliviar todas as loucuras que sua filha coitadinha deixava escapar: "Não foi bem assim, o senhor sabe como criança exagera... Imaginação aflorada!". Depois de um tempo, creio que os médicos perceberam a manipulação por parte dela e notaram o quanto eu ficava travada em sua presença, sendo assim, não tardaram a exigir conversas individuais comigo. Minha mãe achou um absurdo e ponderou a ideia de processar a clínica, mas meu pai tratou de acalmá-la e tudo logo se acertou – ao menos frente aos outros.
Em casa, sofria praticamente uma lavagem cerebral escutando seguidas vezes que precisava parecer normal. "Para não assustar o papai, meu amor... Ele anda muito preocupado."... Mas no fundo eu sabia que era, na verdade, para não assustar a ela.
Com o tempo fui cansando disso tudo e, mesmo com a cabeça de criança, resolvi me ausentar. Fugia das perguntas, me esquivava das broncas e não saia mais com tanta frequência do quarto. Para completa tristeza de meu pai.
Comecei a ser uma menina retraída, sem qualquer tipo de interação social. Por isso, quando fiz dez anos, colocaram-me novamente numa escola. A partir daí, por receber a dádiva de pensar em tudo por conta própria, sem interferência direta de minha mãe, fui aprendendo a controlar as anormalidades. Descobri que elas aconteciam de acordo com minhas emoções, meus sentimentos.
Percebi que cortei o braço de minha mãe, aos cinco anos, pois ela não queria me dar um cachorrinho. Aos seis, explodi meu passarinho, pois ele estava perturbando-me com sua cantoria. Com sete, sequei a piscina porque queria tomar banho nela, mas estava gripada e não podia.
Fui enxergando todos os motivos para os acontecimentos e pude passar a controlá-los. Mamãe foi esquecendo de seu surto paranoico e papai lentamente voltou a sorrir. Porém, a voz não tinha explicação e eu não conseguia pará-la. Uma vez ou outra a mandava "calar a boca" em tom alto, parecendo uma louca, mas disfarçava e ficava tudo bem.
Comecei a fazer amizades. Poucas, mas preciosas.
Minha vida começava a dar certo e eu estava ficando realmente feliz, quando mais coisas estranhas passaram a acontecer.
Aos 13 anos, comecei a ter visões. Elas vinham do nada e paralisavam-me. Tempos depois cessaram, mas, mesmo assim, meus poucos amigos afastaram-se e eu era novamente a estranha da escola.
O tempo foi passando. Não fiz mais amigos e passei a não contar nada a meus pais. Fui afastando-me de tudo e de todos, ficando cada vez mais sozinha.
Hoje, aqui estou eu, em plenos quinze anos de idade, com o mesmo cabelo preto e liso de sempre, os olhos negros como jabuticabas e a pele clara. Não mudei muito desde minha infância, a não ser pela altura. Continuo seguindo a mesma vida chata e louca de sempre.
Só que agora há uma coisa nova que está fazendo-me perder o sono à noite: minha mãe está doente. Muito doente! Ela descobriu que tem câncer e vai fazer uma cirurgia na semana que vem para tentar retirar o tumor.
Como me sinto? Com medo! A voz em minha cabeça afirma que vai ficar tudo bem, mas isso não me tranquiliza. Afinal, o que uma voz sabe sobre tudo ficar bem ou não?
Vou com mamãe numa consulta hoje. Espero receber boas notícias.
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O Ciclo de Sangue - Traçado pelo Destino (livro 01)
FantasiLucy é jovem. Em seus plenos 15 anos perde a mãe e o pai, tendo que ir morar com os avós. Em uma nova cidade, se depara com o passado desconhecido de sua família, sendo lançada em direção a um iminente futuro, que sempre esteve a sua espreita. Em me...