Adentrei a sala do médico e a voz, que antes estava suportável e sussurrando baixinho que tudo ia ficar bem, agora gritava, implorando que eu saísse dali. Sentei-me mesmo assim.
O lugar era por inteiro branco. Pude notar uma mesa cheia de papeis e toda desorganizada. Duas cadeiras de couro estavam dispostas para acomodar os pacientes. O médico sentava-se logo a nossa frente.
Prostrava-me com as mãos na cabeça, os cotovelos apoiados nos joelhos, quase chorando, quando mamãe com sua voz serena e tranquilizadora cessou a gritaria em minha mente.
_ Doutor Rodrigo, ela precisa mesmo ficar aqui comigo? Prefiro que Lucy espere na recepção.
_ Seria bom se ela estivesse aqui para ouvir o que tenho a dizer. – sua voz era assustadora e causava-me arrepios.
_ Está insinuando que só porque estou doente – disse minha mãe. – não posso nem compreender o que tem a dizer?
Eu, até então, estava de cabeça baixa, mas resolvi levantar os olhos para observar o médico que queria obrigar-me a permanecer na sala.
_ Não senhora, não quero dizer isto. – quando olhei diretamente em seus olhos, tive que abafar um grito.
Havia fogo dentro deles! Fagulhas que pareciam consumir suas íris cor de mel.
Quando ele fitou-me com seus olhos flamejantes, senti as pernas tremerem, meu corpo amoleceu e eu quase desmaiei.
_ Vá para fora, minha filha. Aguarde-me na sala de espera.
Eu não queria, mas fui sem protestar. Quando sentei na primeira cadeira da recepção, a voz voltou. Calma e tranquilizadora, dizia para que não me assustasse, pois o medo era meu inimigo.
Neste meio tempo em que fiquei na recepção, já que não tinha nada para fazer, pensei se podia conversar com a voz. Achei meio estúpido, mas tentei formular uma frase em minha mente:
"Você pode ouvir-me?"
"Sim." Ela respondeu.
De súbito, minha mente pareceu reconhecer aquela voz. Era familiar! Acho que conversar diretamente com ela fez uma caixinha de lembranças antigas abrir-se.
Pensei novamente:
"Eu conheço essa voz..."
Nada. Nenhuma resposta.
"Você me conhece?"
Nada.
"Você é real? É fruto da minha imaginação?"
"Não! Sou real. Um dia você vai rever-me."
Rever-me? A voz disse rever-me! Conheço-a. Involuntariamente, confirmou minhas suspeitas.
"Por que você acompanhou-me durante a vida inteira?"
"Minha querida, não posso responder-lhe este tipo de pergunta. Você deve descobrir esta resposta sozinha."
"Ok, mas faça-me um favor?"
"Diga."
"Não grite mais. Quando quiser chamar minha atenção, apenas diga meu nome. Por favor! Os gritos enlouquecem-me."
"Não prometo isso, mas vou tentar controlar-me."
"Por que não queria que eu ficasse com mamãe durante sua consulta?"
Nada. Silêncio. Nenhuma resposta.
"Mais uma resposta que terei de descobrir sozinha?"
"Você é esperta, querida. Não se preocupe. Tudo vem no tempo certo."
Mamãe saiu da sala do médico.
_ Como foi? – perguntei.
Ela não deu-me atenção. Segurou minha mão e puxou-me com força, conduzindo-me à saída.
Fomos em silêncio para casa.
Preferi não questioná-la sobre o que tinha acontecido naquela consulta, pois seu olhar era apreensivo e preocupado. Resolvi esperar que contasse-me por vontade própria.
Não conversei mais com a voz, pois para isso tenho que desligar-me do mundo ao meu redor, então prefiro estar sozinha.
Antes de irmos para casa, passamos numa lanchonete para comprar refrigerante, já que eu estava com uma sede descontrolada.
Mamãe não olhou para mim um instante sequer. Acho que tinha medo que eu iniciasse um interrogatório.
_ Mãe... – falei com a voz trêmula. – Não precisa me contar nada. Respeito seu silêncio.
_ Obrigada, filha... – disse ela sem sorrir e com tom de voz triste. – Obrigada por me compreender.
Chegamos em casa e eu fui direto para meu quarto.
As paredes num tom amarelado contrastavam com os raios de sol que entravam pela janela. Uma brisa fresca brincava com as cortinas, deixando o ambiente ainda mais calmo.
Agarrei um pacote de salgadinhos que estava em cima da minha escrivaninha, lancei-me na cama e comecei a comer.
"Está aí?" Pensei eu, em dúvida se receberia resposta.
"Enquanto precisar, sempre estarei aqui." Disse a voz com calma.
"Por que minha mãe não conta o que houve naquela consulta com o médico olhos-de-fogo?"
"Querida, respeite o silêncio de sua mãe. Ela tem seus motivos para não querer lhe contar." Senti que a voz estava me escondendo alguma coisa.
"E você tem conhecimento desses motivos e não quer falar..."
Nenhuma resposta.
"Eu queria saber esses motivos para entender melhor minha mãe, para não ter raiva dela, para entender melhor a minha vida!" Estava começando a ficar nervosa.
"Querida, não aconselho que fique nervosa nem com raiva. Você não pode ter este tipo de sentimento."
Minha vez de ficar em silêncio.
"E quanto aos motivos de sua mãe..." Recomeçou ela. "Bem, você irá descobri-los sozinha."
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O Ciclo de Sangue - Traçado pelo Destino (livro 01)
FantastikLucy é jovem. Em seus plenos 15 anos perde a mãe e o pai, tendo que ir morar com os avós. Em uma nova cidade, se depara com o passado desconhecido de sua família, sendo lançada em direção a um iminente futuro, que sempre esteve a sua espreita. Em me...