Eram cerca de 21h. Estavam cara a cara. Mãe e filho, em Copacabana, no balcão do famoso Restaurante Cervantes, posicionados bem ao lado do caixa, quase na calçada da Rua Barata Ribeiro. Finalmente era a hora inevitável de discutir um assunto entalado nas duas gargantas.
Enquanto a mãe pedia um copo de chopp atrás do outro, o filho lambia com calma cada gota do líquido, saboreando-o. Um verdadeiro contraste. Coragem devidamente bebida, ele puxou o assunto:
- Mãe: você já sabe do que se trata esta nossa conversa, não é mesmo?
- Sei, mas quero ouvir de novo o assunto e resolver de uma vez por todas.
- Mãe: eu quero namorar com uma mulher de outra raça!
- Eu tinha certeza! Certeza absoluta que um cabeça dura como você ia insistir nesta ideia sem futuro. E quer saber logo o que penso? Penso o mesmo de sempre! Eu não aceito! – disse a mãe já entortando um pouco a língua.
Manolo, o filho, respondeu de forma exaltada:
- Eu já tenho idade suficiente para saber o que é bom para mim. Além do mais, tenho o direito de escolher a companheira que bem entender, sem distinção de raça, credo ou cor.
Dona Jussara, sua mãe, retrucou com imenso deboche:
- Ah! Tem idade, é? Então, faça sua comida e coloque no prato. Organize suas bebidas, limpe suas coisas, suas sujeiras. Ora, ora, rapazinho! Você só pode estar brincando! Ainda estás muito longe de qualquer autossuficiência! Dependes da tua mãe para tudo! E é assim que você me agradece por todos estes anos de dedicação? Me trocando por uma sirigaita?
- Fala baixo, Juju!
- Por que? Quer mandar em mim agora?
- É que ela está aqui do lado, no balcão do Galeto Sat's! Falei para ficar por perto, pois acreditei que podíamos acabar esta conversa bem! Ah, mãe! Dá uma olhadinha! Ela é tão linda! – disse Manolo se referindo à parceira conhecida pelo apelido de Baiana.
- Você tá brincando que vou por meus olhos nesta vagabunda! Prefiro ficar cega!
Enquanto a discussão comia solta um cheiroso sanduíche de filet com queijo, especialidade da casa, chegou. Jussara pegou logo sua metade e solicitou que a outra fosse partida em pequenos pedaços da forma como o filho costumava comer. Foi quando ele falou:
- Quer saber, Juju? Você nem parece que é minha mãe! Às vezes eu duvido até que seja!
- E quer saber, Manolo? – respondeu a senhora trôpega – Não sou mesmo! Você é adotado!
- O que você está dizendo? – perguntou assustado.
- É isso! Vou te falar toda verdade! Eu e seu "pai"- que Deus, ou o diabo, o tenha – compramos você!
- Compraram? Como assim?
- Seu pai verdadeiro era um indigente que vivia pelas ruas de Copacabana. Estava sempre nas imediações da Prado Júnior, Duvivier, Viveiros de Castro. Ele cheirava mal e era extremamente maltratado e doente. Já sua mãe não passava de uma vagabunda que fazia ponto aqui do lado, na Prado Júnior mesmo. Fazia sexo com qualquer um e fez com seu pai. Foi assim que você nasceu! Nós, casal honrado, do bem, de família tradicional do bairro, não tínhamos filhos. Então, através de um intermediário chamado Ruperti, pagamos um valor para te adotar, bem como a confecção de todos os documentos legais.
- Meu Deus! Meu Deus! Toda minha vida foi uma enganação! – afirmou Manolo bem triste.
- E tem mais... Vou falar logo tudo! Você ainda teve 05 irmãos. Dois eu nunca soube do paradeiro. Dos outros 3 tenho notícias: um está morto, o outro preso e o terceiro também tinha sido adotado, mas fugiu da residência dos pais. Dizem que agora mora numa casa, em Realengo, com outra família.
- Acabou para mim! Você me destruiu, mãe! Destruiu minha vida, meus sonhos, minhas histórias, minhas expectativas. Tem algo ainda mais trágico para me contar?
- Tenho sim! – respondeu Jussara, enquanto pagava a conta que tinha acabado de chegar – Você nem humano é!
- Tá louca! Não sou humano?
- Manolo: eu não estou louca! Estou apenas bêbada! Você não é humano! É o meu cachorro! Vou pegar aqui estes pedacinhos de sanduíche, que você deixou, o copinho que você lambeu, botar a tua coleira e vamos embora! Já está tarde!
Deixaram o bar, Jussara, aos trancos e barrancos, tropeçando nas pedras portuguesas e Manolo com o rabo entre as pernas, choramingando. Quando passaram pelo Sat's, olhou triste para a cadela Baiana. Ela acenou com a patinha, dando um último adeus.
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HISTÓRIAS ICÔNICAS DE UM UNIVERSO SURREAL VOLUME 1
General FictionEste livro é um conjunto de 10 contos surreais/fantásticos. Sinopse: Existem mundos dentro de mundos: universos paralelos e multiversos, que se entrelaçam. "Histórias Icônicas de um Universo Surreal", em seu primeiro volume, contem 10 contos fantás...