A ARCA DE LUIZINHO

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– Esta casa virou um zoológico, Luiz! Não acredito! Mais um bicho! Tem animais demais aqui! Não sei o que se passa na sua cabeça! – reclamava Gisele ao marido.

– Eu preciso salvar os bichinhos. Vai acontecer uma tragédia em Nova Iguaçu! – respondeu Luiz.

– Você perdeu o juízo! – disse a mulher, desistindo da conversa.

De forma cuidadosa, Luiz Vigário Assis, o conhecido Luizinho, colocou a gaiola de calopsitas no chão do salão da casa. Elas iriam se juntar aos gatos, cachorros, coelhos, hamsters, iguanas, cobras e até gambás, que já "moravam" no cômodo.

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Verdade seja dita: a vida se tornou infernal para Gisele desde que Luizinho largou a bebida. Ela se amaldiçoava todos os dias por ter sido a maior incentivadora para vê-lo livre do vício.

Aliás, por conta disso, há um ano atrás ele entrou para a Igreja do Juízo Final, localizada na Avenida Getúlio Moura e comandada pelo Arcebispo Radamés Josué.

De pinguço de primeira a devoto, Luizinho passou por uma transformação, inclusive sendo batizado pelo próprio Arcebispo, no rio Tinguá, em uma cerimônia promovida pela igreja.

Esqueceu da "Heineken nossa de cada dia", afastou-se dos "amigos do mau caminho" e mudou seu figurino despojado para um mais sóbrio - com direito a camisas e calças sociais, sapatos e ternos. Agora orava diariamente, lia o evangelho e acreditava nas pregações de Radamés, muito conhecidas pelo fervor do Arcebispo e suas profundas profecias.

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Foi em um dia de sermões que Luizinho ouviu o que mais lhe marcou. O tema era a inundação de Nova Iguaçu, por seus rios, durante uma tempestade avassaladora no estado do Rio de Janeiro.

O município da Baixada afundaria como Atlântida devido à forma mundana como viviam seus moradores. Alguns poucos se salvariam e seriam justamente os fiéis seguidores e "contribuintes" da Igreja do Juízo Final.

A partir desta data Luizinho deu como certo o fim de Nova Iguaçu. Como fiel servidor da igreja acreditava poder se safar deste apocalipse.

Apaixonado por animais, pensou não poder deixar alguns dos seus bichinhos prediletos se perderem na futura inundação. Então, assim como fez Noé, começou a separar algumas espécies no salão de sua residência, para total desagrado de Gisele – sua companheira de 30 anos de casamento.

Moravam sós em uma boa casa que já tinha abrigado a família. Os 5 filhos cresceram e partiram mundo afora. Agora acompanhavam de longe a "loucura" do pai e ouviam por telefone os lamentos da mãe.

Ela sentia tremenda vergonha da vizinhança, principalmente pelos vizinhos terem descoberto que Luizinho estava construindo uma arca no próprio quintal. Pronto! Eram a chacota de Nova Iguaçu!

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– Pelo amor de Deus, homem! Para com esta maluquice! Eu até preferia quando você bebia! Me dava menos trabalho que agora! – falou Gisele para o marido.

– Então, é pelo amor de Deus mesmo. Ele vai promover esta mudança na nossa cidade. Nós vamos nos preparar e salvaremos os bichinhos mais queridos – respondeu Luizinho, crente na "profecia".

– Não acredito nesta baboseira! O que aconteceu com você? Qual foi a lavagem cerebral que te fizeram? Que droga te deram?

Enquanto Gisele fazia suas perguntas, uma forte trovoada ecoou por toda Nova Iguaçu. Em seguida o final de tarde tornou-se noite. Relâmpagos começaram a cair, bem como uma chuva de pingos muito grossos.

– Nossa! Uma tempestade! – exclamou a mulher assustada.

Ventos de alta velocidade carregavam as roupas estendidas, derrubavam árvores e quebravam vidros.

A luz acabou.

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Luizinho mandou a mulher entrar na arca e correu ao salão para pegar seus bichos. No ímpeto de leva-los para a embarcação, acabou se atrapalhando e deixou o caos tomar conta do espaço, soltando todos ao mesmo tempo. Nesta confusão, os cachorros (Eros e Zara) e os coelhos (Perninha e Lilica) se estranharam. O alto latido dos cães fez o casal de lagomorfos se assustar e ter um infarto simultâneo.

Enquanto isso, a cobra devorava o gambá, as calopsitas atacavam a iguana e os gatos caçavam os hamsters.

Desesperado, Luizinho foi pego de surpresa pelo aguaceiro inundando a sala, boa parte da casa, do bairro e do município.

Tentou se salvar e aos animais, mas a situação ficou complicada. Nadou até o quintal, puxando pelo pescoço o cachorro Eros, mas a arca já havia sido levada pela correnteza.

Só houve tempo de ver a mulher fazendo gestos de desespero e ouvir os gritos, cada vez mais distantes, pelo seu nome.

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No fim das contas Nova Iguaçu não afundou como Atlântida, mas passou pela sua maior tragédia e por pouco não sumiu do mapa naquele dia de tempestade.

Dois anos depois a cidade ainda se recuperava do ocorrido. Muito foi investido em sua reconstrução, bem como na recuperação da autoestima de seus cidadãos.

Uma das grandes cerimônias desta nova fase foi a inauguração da praça Luiz Vigário Assis. Lá havia uma estátua em homenagem a este cidadão exemplar, o qual sacrificou sua vida para salvar importantes animais locais.

O monumento retratava Luizinho como uma espécie de São Francisco de Assis (por coincidência tinha o mesmo sobrenome do santo), cercado pelos bichos que tanto tentou preservar.

Neste dia importante a viúva Gisele discursou com veemência, enaltecendo todas as qualidades do falecido marido, em particular sua devoção a Deus e a crença nas profecias da sua igreja.

Ela tinha começado uma nova vida e casara-se com o Arcebispo Radamés. Moravam em uma luxuosa cobertura no Centro.

Rebatizaram a Igreja do Juízo Final. Agora chamava-se Igreja dos Futuros Apocalipses da Baixada.

Sob o comando de ambos a instituição exagerava nos pedidos de doações aos fiéis, mas por uma boa causa: fazer uma melhor interseção com Deus e protege-los das futuras catástrofes.

A prefeita Rosângela Cabide também discursou e anunciou que o município, juntamente com as autoridades religiosas nacionais, havia solicitado diretamente ao Vaticano a canonização de Luiz, o exemplo de uma cidade. Estavam esperançosos.

De qualquer forma, pela Baixada afora, já eram vendidas imagens, santinhos e diversos artefatos do "futuro" São Luiz de Iguaçu, o protetor dos animais, aquele que guardava todos das tempestades e catástrofes.

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HISTÓRIAS ICÔNICAS  DE UM UNIVERSO SURREAL VOLUME 1Onde histórias criam vida. Descubra agora