DOMO CONJUGAL

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Rafael e Maitê se conheceram nos tempos da faculdade. Ela cursava Arquitetura, ele Letras. Filhos de famílias abastadas, estudavam na PUC, na Gávea, no Rio de Janeiro. Ficaram muito; muito grudados. Namoraram, noivaram, viajaram juntos mundo afora e, por fim, casaram-se

Não conseguiram ter filhos. Maitê teve que retirar o útero por conta de problemas de saúde.

A decepção se tornou uma sombra no relacionamento.

Rafael não se conformava pela falta de um herdeiro genuíno e passou a culpar a mulher por este infortúnio e por todos os outros que apareciam em sua vida.

Maitê, por sua vez, trocou sua alegria por amargura e seu lindo sorriso por uma tristeza constante.

Os anos passaram e aquele casal tão próximo tornou-se diferente. Eram quase estranhos um ao outro, mal trocando palavras.

Talvez por antigos bons momentos, pelas alegrias do passado ou por algum vínculo inconsciente, jamais pediram o divórcio.

Entregaram a administração de suas finanças e do seu dia a dia para assessores e dividiram a luxuosa cobertura da Rua Vieira Souto, em Ipanema, em dois ambientes distintos, onde muitas vezes nem se cruzavam.

Maitê tocava seus projetos de arquitetura, enquanto Rafael escrevia seus bem sucedidos livros. "Desconhecidos" hospedados em um grande hotel.

Numa noite de verão, daquelas de intenso calor, um barulho ensurdecedor tomou conta da cidade. Não foi possível identificar se ocorria uma guerra ou uma tragédia natural. Tremores e explosões a tudo destruíam.

Maitê e Rafael, cada qual em sua parte da cobertura, se protegiam como podiam, vendo paredes desabarem, destroços voarem por todos os lados e ouvindo gritos de dor oriundos da vizinhança.

§§§

Ao amanhecer foram acordados pelo brilho do sol e perceberam que estavam vivos.

Demoraram a acreditar, mas ambos estavam dentro de um imenso e transparente domo. Cada um de um lado, separados internamente por um vidro inquebrável. Aquilo parecia um sonho!

O domo estava equilibrado em cima da estrutura física do prédio e podia-se ver a praia, o mar e a avenida. Tudo porém sem nenhum ser humano presente, sem um único rastro de vida. Dentro dele ambos tinham seus um mini apartamentos com decoração própria, banheiro, móveis, objetos e utensílios para uso pessoal. Podiam enxergar um ao outro pelo vidro que dividia o local.

Aproximaram-se da divisória simultaneamente e ao tentarem se comunicar, constataram que não tinham mais voz. Não conseguiam falar! Estavam mudos!

Assustados com o fato, afastaram-se.

§§§

Os primeiros dias no domo foram de desespero, questionamentos internos, pensamentos confusos e medo. Viviam uma agonia pessoal, confrontando-se com seus fantasmas mais íntimos e pensando no que havia acontecido ao mundo.

Em certos horários uma música suave era ouvida o que os fazia adormecer. Parecia que a canção os conduzia a um mundo de sonhos e quando acordavam já era de manhã ou, muitas vezes, o dia ainda estava acontecendo, mas seus aposentos tinham sido limpos e a dispensa estava cheia. Havia alguém por detrás daquilo e isso lhes causava mais medo e curiosidade.

§§§

Após algumas semanas a fumaça provocada pelas explosões e pelos destroços começou a desaparecer, dando lugar a um cenário maravilhoso de estrelas, nuvens, sol e lua, como jamais haviam visto.

Observando o céu de uma noite estrelada, Rafael identificou as "Três Marias". Quando namorava com Maitê sempre buscavam juntos este conjunto de estrelas. Quem as achava primeiro ganhava um beijo do outro. Ele bateu no vidro e apontou para elas, chamando a atenção da companheira. Ficaram ambos deitados no chão olhando para o céu. Naquele momento muitas lembranças de uma época feliz passaram por suas cabeças.

A partir desta noite talvez aquele vínculo que nunca os abandonou, que os fez não pedir o divórcio e os manteve juntos no mesmo ambiente, mesmo à distância, se apresentou. Começaram a se comunicar através de pequenos símbolos, gestos, desenhos, cartas e bilhetes.

Maitê fez uma pintura para Rafael. Ele escreveu poemas para ela. Trocaram sorrisos, lágrimas e olhares. Geraram uma cumplicidade maior do que qualquer palavra.

Ali a humanidade era somente os dois. E o que seria da humanidade se não houvesse entendimento em sua forma mais simples?

Os dias tornaram-se semanas, as semanas tornaram-se meses e os meses viraram anos. Anos de relacionamento, de companhia e de amor em uma convivência sem toques e sem sons.

Era primavera e ao final da tarde se aproximaram do vidro. Grudaram suas mãos e lábios apenas imaginando como seria dar vazão aos sentimentos guardados por tanto tempo. Foi uma comunhão profunda interrompida pela música que os fez dormir.

Quando Rafael acordou, Maitê não estava mais no domo. Ele ficou desesperado. Queria gritar, mas seus gritos não saíam. Chorou, socou o vidro e chutou tudo à sua volta em busca de uma explicação, mas não teve êxito. Agora era apenas ele naquele estranho mundo particular.

§§§

Meses depois começou a avistar silhuetas gigantescas, do lado de fora, muito próximas à sua localização. Não tinha certeza do que eram, mas pareciam seres humanos. Ignorou o fato. Após o sumiço de Maitê não sentia mais curiosidade, nem tampouco o velho medo. Não havia mais nada a perder.

Em certa feita, sentiu o domo sacolejar e achou que havia chegado sua hora de "desaparecer" também.

Ao olhar para fora viu uma imensa mão feminina segurar o objeto. Ela o tirou de cima do prédio e o carregou consigo até a praia. Chegando próxima ao mar, levantou-o e olhou para dentro. Incrédulo, cruzava novamente seu olhar com os olhos cheios d'água de Maitê, que desta vez traziam um pranto de despedida.

Ele leu um "eu te amo" vindo de seus lábios e logo depois o invólucro de vidro foi arremessado em direção ao mar, onde começou a afundar.

Rafael em nenhum instante se moveu. Contemplou cada etapa do seu afundar, também em lágrimas, e repetindo mentalmente "eu te amo".

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HISTÓRIAS ICÔNICAS  DE UM UNIVERSO SURREAL VOLUME 1Onde histórias criam vida. Descubra agora