Rewinding

1K 100 13
                                    

    Amherst, Massachusetts. 1858.

...

     Nunca pensei exatamente em como a minha vida iria acabar. Nunca me questionei se realmente valia a pena viver sendo que todos nós vamos morrer um dia. Na verdade, sempre me permiti fazer as coisas das quais tinha vontade, me metendo em várias confusões e trazendo alguns transtornos para a casa Dickinson. Nunca fui lá uma moça muito dedicada às tarefas domésticas, sempre almejei sair dessa bolha. Sempre quis ser alguém além do que queriam que eu fosse, sempre quis aprender mais sobre de onde vim e para onde estou indo, mesmo que ninguém nunca me deixasse fazer isso. Me destaco na família desde pequena por ser do tipo que sabe confrontar, mesmo que o meu adversário seja 一em tese一 mais forte do que eu, e meu principal adversário tem sido a minha própria mente, na qual me toma e tenta fazer com que eu perca o controle das coisas. Isso tem acontecido nesse período em que Sue está grávida, meu noivo e Austin estão viajando a trabalho e eu preciso ficar de cuidadora. Aliás, acho que nunca contei para ninguém como tudo entre nós duas começou.

      Susan Gilbert se mudou para a pacata Amherst bem no início dos anos 40, quando tinha dez anos. Ela vinha diretamente do centro de Massachusetts com toda a sua família: seus pais, tios, primos e suas três irmãs, Mary, Trudy e Harriet. Apesar de ter uma família grande, ela era mais apegada a sua tia Sophia, que era, inclusive, dona de uma quitanda na esquina da minha rua na qual minha mãe costumava comprar coisas para casa. Foi numa dessas que eu conheci a Susie, ou Sue como todos a chamavam.

     Lembro-me bem do quão gelada aquela manhã estava, era começo de inverno e minha mãe tinha decidido nos fazer uma sopa de legumes. Pensando nisso, me chamou para acompanhá-la até a quitanda, assim eu poderia ajudá-la com as sacolas na volta. Assim que chegamos, pude ver que não era a senhora Gilbert quem estava de frente, e sim, uma menininha que aparentava ter mais ou menos a minha idade. Ela tinha o cabelo arrumado em trancinhas, todas juntas para trás. Também vestia um suéter surrado sobre um vestidinho amarelo meio desbotado, tinha um olhar tímido e as duas mãos para trás. Foi ela quem nos vendeu algumas batatas, cenouras, tomates e espinafre. Não esboçava um sorriso, sequer abria a boca para falar, era como se o gato tivesse comido sua língua, o que me despertou uma curiosidade imensa. Quem era ela? O que fazia? Por que tão calada? Eu logo descobriria.

      Dias depois eu saí fora para brincar com Austin, Lavínia e mais alguns vizinhos nossos. Gostávamos muito de brincar de esconde-esconde, mesmo sabendo que isso poderia acarretar alguns probleminhas, afinal, entrávamos até em propriedade privada para nos escondermos. Apesar de tudo, nos divertíamos bastante até o final da tarde. Nesse dia em especial, notei que Sue nos observava da porta de sua casa. Estava sentada num banquinho possuindo as mesmas tranças para trás. Parecia querer se aproximar mas era vergonhosa demais para isso, sendo assim, tomei coragem para convidá-la, a pegando pela mão mesmo sem intimidade e a inserindo no meio do meu grupinho de amigos. Finalmente a vi sorrir e a partir dali, começamos a brincar juntas todos os dias.

     Não demorou nada para que eu notasse que sua família era de baixa renda e que todos se viravam como podiam para sobreviver, por essa razão, Sue não tinha muitos brinquedos ou roupas e sapatos novos, por isso eu sempre a emprestava algo do tipo. Todo ano meu pai enchia eu e meus irmãos de presentes, os que ficavam velhos nós entregávamos para uma espécie de programa de doação que tinha na igreja, e foi pensando em Sue que eu comecei a juntá-los numa caixa de madeira debaixo da cama, para assim dá-la de presente de aniversário. Acho que nunca a vi tão feliz como no dia em que fiz isso, ela estava fazendo onze anos. Além dos brinquedos, também dei umas roupas novinhas que tinha acabado de ganhar, ela quase chorou em gratidão, mas ao invés disso só pegou na minha mão e deixou um beijo em minha bochecha. Foi a primeira vez que eu conheci as borboletas que permaneceriam comigo pelo resto da minha vida.

Com amor, Emily.Onde histórias criam vida. Descubra agora