XXV

16 0 0
                                    

Acordei com batidas na porta do meu quarto. Sentei-me na cama murmurando um pedido de espera, buscando forças para levantar após uma noite sem descanso. Levara horas para conseguir fechar os olhos e frequentemente despertara com os pesadelos - a cabeça de João nas minhas mãos, seu sangue escorrendo por entre meus dedos -, mas dormi mais do que esperava. Pude descansar por duas, três horas talvez.

Vesti um roupão simples, apenas para cobrir as roupas com que dormi. O ar, fora da cama, era gelado e fazia meus ossos doerem. Quase uma lembrança da situação terrível na qual me encontrava.

– Norman? – perguntei surpresa, encontrando o homem parado em frente à porta. Ele tinha negras e profundas olheiras sob os olhos, que pareciam ter perdido o brilho. Seus ombros estavam caídos - a postura de um homem quebrado -, e não havia sinal de seu sorriso costumeiro. – Não esperava te encontrar aqui.

– O velório de João será daqui a meia hora. – disse ele, com expressão vazia. – Pensei em passar para te avisar.

– Oh. – senti um soco no estômago, a culpa me punindo por não ter feito meu trabalho a tempo. – Entendo. Se puder esperar 15 minutos, logo me juntarei a você.

Sem mais palavras, Norman acenou com a cabeça e virou-se, indo em direção às escadas que levavam à recepção. Novamente, amaldiçoei-me por ter aceitado ir até aquele lugar e envolvido-me com aquela gente; os passos lentos do homem e o terno preto que vestia me partiram o coração. Eu deixei seu amigo morrer.

Fechei a porta, indo rapidamente até minha mala para pegar uma muda de roupas adequada. Retirei de lá, com pesar, o mesmo vestido que usara no velório de Lawrence Wallace, há apenas poucos dias. Lembrava-me de usá-lo na cafeteria e Norman brincar, dizendo que eu estava de luto. É a mais triste das ironias pensar que, agora, realmente estou. Não demorei muito a me arrumar, logo descendo os degraus que levavam ao lobby do hotel. Norman estava lá, sentado em uma das cadeiras da recepção enquanto parecia encarar algum ponto na parede à sua frente, perdido em pensamentos. Sr. Lombardi, por sua vez, lia o jornal detrás do balcão, com o rosto vermelho e indignado.

Buongiorno, signorina Taylor. – cumprimentou o italiano assim que me viu. – Viu os últimos acontecimentos da cidade?

– Bom dia. – cumprimentei, olhando de canto para Norman. Assim que percebeu minha presença, o homem levantou-se e permaneceu parado, me esperando. – Sim... Fiquei sabendo.

– É uma calamidade o que acontece. – bradou, balançando a cabeça de um lado para o outro. – Essa polizia não faz nada mesmo, é uma vergonha. Esse prefeito, então! Não tem cidade segura, não faz nada p'ra melhorar!

– De fato, Sr. Lombardi. – murmurei, ansiosa por sair dali. O peso da responsabilidade pela morte de João já era um fardo pesado demais; cada menção ou lembrança ao dia anterior fazia a dor aumentar. – Preciso ir, tenha um bom dia.

– A signorina também! – exclamou, voltando sua atenção ao papel em mãos. Andei em passos apressados em direção à Norman, que também começou a caminhar até a saída. Não queria ouvir os murmúrios do hoteleiro sobre o trágico assassinato do funcionário da cafeteria local.

Caminhamos em silêncio até uma modesta casa no centro da cidade, durante uns 10 minutos. A residência de João era simples: um jardim pequeno, porém bem cuidado, decorava a frente da casa de um andar, que tinha paredes azuis claras e um telhado feito de telhas laranjas. Uma pequena varanda de madeira separava-se do chão por uma escadinha de três degraus, possuindo uma cadeira de balanço que deveria ser usada pelo dono em seus momentos de descanso. A casa, como dolorosamente notei, era como seu proprietário: confortável e acolhedora. Não o tipo mais refinado, mas que certamente agradaria a qualquer pessoa.

Entrei na residência logo após Norman, cumprimentando silenciosamente as pessoas de luto pelo caminho. Não eram muitas - além de mim e meu companheiro, deveriam haver mais quatro ou cinco pessoas -, mas imaginei que a razão para isso era estarmos um pouco adiantados. A sala, de decoração simples, tinha seus móveis arrastados para os cantos, e um caixão lacrado repousava no centro. Uma bela mulher morena estava a seu lado, sem conseguir conter as lágrimas que desciam por seu rosto. Ela aparentava ter por volta de 35 a 40 anos, e usava um vestido preto e chapéu da mesma cor. Um nó se formou em minha garganta ao perceber que essa era a esposa de João.

– Beatrice. – cumprimentou Norman, abraçando a mulher. Ela se deixou ser envolta pelos braços do homem, o que me fez imaginar que Norman era íntimo de toda família Boettger. – Como você está?

– N-Nada bem, Sr. Ray. – Beatrice afastou-se, respirando fundo e secando as lágrimas com um lencinho que tinha nas mãos. – Não acredito q-que ele se foi.

– Eu também não. – disse Norman, em um suspiro cansado. – Essa é Lilian. – ele virou-se em minha direção, me apresentando à anfitriã. – Ela veio de Boston para ajudar na investigação dos casos.

– É um prazer conhecê-la. – falei, apertando a mão da viúva. – Eu sinto muito por seu marido. – um nó se formou em minha garganta, vendo os olhos encharcados da mulher. Eu lhe tirei seu amor. – Ele era um bom homem.

– E-Eu sei. – Beatrice olhou para o caixão, e um minúsculo sorriso triste surgiu em seus lábios. – Era o melhor dos homens.

– Você sabe que pode me procurar para qualquer coisa que precisar, Beatrice. – disse Norman, completamente sério. – João era como um irmão para mim. Ele gostaria que eu cuidasse de você.

– Agradeço muito, Sr. Ray. – disse a mulher, com os olhos úmidos. – No momento, eu só preciso que descubram quem fez isso com ele. – Beatrice segurou firme minhas mãos, olhando no fundo de meus olhos. – E-Eu lhe imploro, senhorita Taylor. Meu marido falou sobre você, d-disse o quanto v-vocês progrediram em descobrir o-os responsáveis por outras mortes. – Eu já vira, muitas outras vezes, olhares desesperados. Nunca, porém, algum havia me abalado tanto. – M-Me prometa que v-vai encontrá-los. P-Preciso saber o que acont-teceu com meu marido.

– Eu prometo. – respondi, apertando as mãos da viúva que se desmanchava em lágrimas. – Eu vou encontrá-los.

– E-Espero que sim. – disse ela, soltando minhas mãos e voltando para seu lugar ao lado do caixão. – João... – murmurou, olhando fixamente para a tampa de madeira. – M-Meu amor, c-como sinto sua f-falta...

Desviei os olhos, afastando-me da mulher. Ver a tristeza profunda que ela sentia era um castigo maior do que eu poderia suportar, naquele momento. Sentia-me terrível por, assim como Vincent em nossa primeira interação, querer fugir daquele lugar. A vida toda eu fizera isso: fugi da morte de minha mãe, de minha terra, da guerra e de tudo que pudesse parecer-se minimamente com um lar.

Eu não sabia por quanto tempo mais suportaria ficar ali, após relembrar o gosto amargo da perda.

Crônicas Abomináveis: Dia das Bruxas Macabro (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora