1 - Luz na Escuridão

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Desespero. Agonia. Acho que qualquer um, em algum momento da vida já se imaginou em uma situação em que estaria confuso e preenchido até o último fio de cabelo por esses sentimentos. Pode até ser que alguém ache que não, porque ao pensar nisso é raro não tentar desviar desse pensamento pra apagar a sensação que ele deixa, mas por mais curto que tenha sido o momento, ele aconteceu e foi usado para imaginar essa sensação terrivelmente desconfortável. Eu acabo de chegar à conclusão de que viver esse momento é muitas vezes pior do que imaginá-lo continuamente por toda a sua vida.

Tá bom, deixa eu organizar meus pensamentos pra tentar entender. Não fazem mais de trinta segundos desde que eu abri os olhos e eu ainda não vejo nada além de escuridão. Pelo que parece, eu estou sem roupa alguma. Eu sinto um chão frio (provavelmente de metal) e o ar gelado que parece rasgar minhas costas expostas. O frio me faz mover instintivamente e isso me faz perceber a dor intensa que corre por todo o meu corpo como se, mais cedo, tivessem me pisoteado intensamente e, como se não fosse suficiente, eu sinto uma quantidade desumana de sede e fome que vão e vêm entre as náuseas causadas pelo cheiro de urina e fezes que impregna minhas narinas. Onde eu estou e como eu vim parar aqui?

Calma... onde eu estava antes de vir pra cá?

Eu estava... eu estava... eu... não lembro! Na verdade, eu não lembro de nada. Onde eu estava, o que eu estava fazendo, como eu vim parar aqui, meu nome, minha aparência ou de onde eu vim. Nada vêm quando eu tento acessar minha memória. Nada!

Mas que merda! Pra completar minha desgraça eu não tenho uma memória pra me ajudar! É sério isso?

Calma... eu tenho que manter a calma antes de qualquer coisa.

Calma...

Calma...

......

AAAAAAAHHHHH!

...

Tá, estou melhor. Não bem, mas melhor.

Tenho que tentar lembrar de alguma coisa. Qualquer coisa que possa me ajudar a entender o que quer que seja.

Primeiro eu vou tentar sentar. A dor mais uma vez não me deixa esquecer que ela está aqui, mas acho que o frio anestesiou um pouco o meu corpo então lentamente eu consigo sentar e encostar na parede que, inclusive, é feita de um metal tão frio quanto o do chão, mas nessa posição meu corpo dói menos e eu fico um pouco mais longe desse fedor desgraçado.

Preciso lembrar de alguma coisa.

. . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . .

. . . . .

. . .

E depois de muito pensar, eu finalmente lembro! Tem uma voz. Talvez a minha? Não sei, ela soa como um sussurro suave e, ao mesmo tempo, assustador. Uma memória vaga que é repelida pela dor e o cheiro forte e podre que permeia o ambiente.

"Sobreviva..."

É o que ela diz.

Sobreviver... não sei se foi um conselho ou uma ordem, mas independente de qual seja, eu não pareço estar seguindo com muita qualidade – Ha... – Pensar isso quase me faz rir e eu teria dado risada se minha boca, garganta e pulmões não doessem, cada um por um motivo.

Já faz algum tempo que eu acordei e tudo que eu consigo pensar agora é um ciclo do que eu já pensei antes, com uma diferença... eu tentei pensar no porquê de eu estar aqui, mesmo sem saber exatamente onde é aqui. Eu posso estar na prisão por ter cometido algum crime, isso pode ser algum tipo de sequestro, ou eu posso ter me prendido aqui por vontade própria, talvez por acidente ou, sei lá, posso ter escorregado e caído aqui. Não sei! Acontece que não ter memórias não te ajuda a ter ideias criativas para os seus problemas. Então agora eu cheguei à conclusão que tudo que eu posso fazer é esperar enquanto eu resmungo de dor de vez em quando, então é exatamente isso que eu vou fazer.

Ou é exatamente o que eu faria, caso eu não estivesse prestes a desmaiar de frio e fome. Não importa o quanto eu me encolha e trema, parece que o metal envolta de mim dissipa calor tão bem quanto ele absorve.... Que? Olha o tipo de coisa que eu penso à beira da morte. Eu devo ter sido uma pessoa muito estranha. Não que importe agora. Eu espero que se eu desmaiar dessa vez eu, pelo menos, acorde lembrando de ter perdido a memória. As outras sensações já são desagradáveis o suficiente sem eu ter que descobrir que não sei absolutamente nada.

. . .

Tem uma verdade na qual eu não quero pensar... essa verdade é que eu pareço já ter perdido a vontade de viver. Não... talvez não a vontade, mas a esperança de que eu vou sair daqui com vida. Sem água, comida, calor ou sinal de que haja alguém além dessas paredes, quais são minhas chances de qualquer forma? É mais fácil só ir. Eu me mantenho de olhos abertos me apegando ao que me parecem ser os meus últimos instantes de vida. Sem ter nada nas minhas lembranças pra me reconfortar enquanto eu, lentamente, vou.

E é quando eu estou prestes a desmaiar que um som diferente me força a impedir por pouco minha perda de consciência. São passos seguidos do barulho do que parece uma grande tranca de metal se abrindo. De repente, LUZ!

Eu enxergo!

Com tudo que já estava acontecendo, eu não tinha descartado a possibilidade de que, ao invés de estar num lugar escuro, eu poderia ter algum tipo de cegueira, quem sabe até de nascimento. Eu não saberia, porque eu não lembro.

Mas eu enxergo! E a felicidade que esse fato me trouxe veio acompanhada de um incrível ardor nos olhos causado pela forte luz do lado de fora seguido por uma dor de cabeça, só pra preencher as partes que ainda não tinham DOR! Simplesmente incrível!

Com a visão embaçada tudo que eu consigo ver é uma silhueta mal definida de alguém em pé na beira de uma porta grande agora aberta.

— Humph, sua comida! – ele fala antes de jogar um prato de madeira no chão perto de mim.

— A... Água... – eu consigo pronunciar com dificuldade.

Ele parece insatisfeito com o meu pedido, mas joga uma espécie de cantil de couro pra mim, lógico, não sem antes cuspir dentro e chacoalhar bem. Ele fecha a porta enquanto ri e vai embora.

A posição dos meus alvos está bem guardada na minha memória e eu ataco com toda a minha determinação e a pouca força que ainda me resta. Primeiro a água, que desce pela minha garganta seca enquanto eu tento não desperdiçar nada em cada um dos doloridos goles que eu dou. Depois a comida. Uma gororoba ensossa de consistência duvidosa e um pão seco, mas eu não tenho a oportunidade pra me importar ou ter qualquer nojo enquanto eu devoro, comendo com as mãos até o que tinha caído no chão sujo. Eu finalizo com um último gole de água, pra empurrar o pão.

Depois de passada a euforia, o primeiro instinto natural do meu corpo é tentar vomitar tudo que eu acabei de comer, mas eu seguro essa vontade enquanto pressiono minhas costas na parede gelada. Eu preciso dessas coisas, por mais nojento que seja, por mais humilhante que seja, misturado com cuspe ou vindo do chão asqueroso da minha prisão de metal, eu preciso disso se eu quiser viver. É minha última esperança.

E é enquanto eu repito tudo isso em pensamento que, depois de todo esse tempo após acordar, eu sinto a primeira lágrima correndo pelo meu rosto e caindo no meu colo. E então a segunda lágrima. A partir daí eu não consigo impedir que elas caiam. Eu choro e choro mais até que essas sensações acumuladas no meu peito parem de pressionar o meu coração que já estava pronto pra desistir. Tudo me atinge de uma vez e do fundo da minha alma eu solto o mais genuíno dos gritos que eu consegui dar.

Um urro longo, alto e profundo que arranha minha garganta e carrega minha frustração, humilhação, solidão, angústia e desespero, enquanto acende algo dentro de mim e marca na minha história o ressurgir da minha esperança de viver.

Eu me prometo, a partir de agora, pela minha própria vida, nunca mais desistir.

Aço Carmesim - As Paredes de Ferro NegroOnde histórias criam vida. Descubra agora