QUELOUCURA

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Meu pai está no porão quando chego. Eu o observo escolher uma cor em sua paleta de bases e depois pincela no rosto da senhora deitada em sua mesa.

A mulher está com o lençol branco por cima do corpo, porque é legal manter a dignidade da pessoa, mesmo que ela já não possa mais reclamar sobre isso. E papai preza muito pela moral de seus clientes.

Paro perto da mesa e me sento na banqueta, apoiando meus pés no apoio.

─ Como foi lá? ─ Ele quer saber.

Papai é sempre preocupado, sincero e bondoso. Não puxei nada disso dele.

Acho que sou frívola, vingativa e histérica como a minha mãe. Uma pena. Eu queria parecer com ele.

─ Tudo bem. Acho que sou mais madura do que pensava.

Ele me olha por baixo dos cílios e abre um sorriso que não sei decifrar, mas prefiro pensar que é de orgulho.

─ Viu o Igor?

Assinto com naturalidade.

─ Rapidamente. Não quero papo com ele.

─ Faz bem. Eu teria dado um soco nele, senão precisasse tirar você de lá.

Papai jamais daria um soco em alguém, mas eu gosto que ele queira me defender mesmo sendo péssimo de briga.

Acabo rindo.

─ Acha que o seu Luís me deixará dirigir o carro até arrumar um emprego? Não me importo de trabalhar de madrugada se for preciso. Eu só não quero ficar com mais e mais dívidas.

Quando eu tirei a minha carteira de motorista aos dezoito anos – que foi na mesma época em que entrei no primeiro curso da faculdade, mas não acabei –, trabalhei dirigindo o carro da funerária por uns meses para pagar minhas despesas, pois não queria mais depender dos meus pais.

E seu Luís sempre me deixava dirigir quando eu estava desempregada. Até porque o rapaz que fazia isso às vezes faltava, e eu sabia muito bem que eles podiam contratar outra pessoa, mas gostavam do tal cara. Acho que papai e seu Luís são pessoas sentimentais.

De qualquer modo, eu acabava revezando com o tal cara e o trabalho ficava suave para os dois.

─ Você sabe que tem carta branca. Se quer voltar a trabalhar com a gente, pode voltar.

Isso me deixa animada. Eu gostava de ir buscar as pessoas e levá-las até suas famílias para o último adeus.
Era poético se você olhasse por um ponto de vista não muito mórbido.

Mamãe que odiava. Ela teria uma síncope se soubesse que além de perder um casamento milionário, voltei a dirigir o carro da funerária. Poxa, acho que meus ouvidos iriam pegar fogo de tanta reclamação.

Mas eu não ligo. Não posso ser perfeita como Valentina, a enteada dela.

─ Sabe, acho que senti saudades desse lugar.

Papai ri.

Ele observa a base que passou no rosto da mulher e aprova, depois vai buscar a paleta de sombras e blush.

Quando volta, seus olhos recaem sobre mim.

─ Sabe que se quiser conversar sobre tudo isso, estou aqui.

─ Eu sei. Só não quero pensar, falar, lembrar. É melhor não bater de frente com a dor.

─ Você sempre foi assim. Mas uma hora ou outra, pequena, você terá que brigar com a dor e vencê-la, só assim ela irá embora. Precisa enfrentar seus sentimentos.

Trago Seu Amor em 7 DiasOnde histórias criam vida. Descubra agora