Parte 1: Ironia - Capítulo 1

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Você mal está piscando

Balançando o rosto por aí

Quando isso se tornou um lar mortal?

 (Roslyn, Bon Iver)


Doze horas haviam passado desde que eu entrara no batalhão militar. Agora, estava saindo, ainda fardada. O vento frio da noite me embalou quando liguei a moto no estacionamento.

Eram 8h. As ruas da cidade estavam desertas.

Acelerei, sentindo-me exausta. O colete que usava começava a pesar sobre o torso.

O dia foi extremamente cansativo. Era final de semana, logo, o número de ocorrências aumentava. O movimento repetitivo e rápido de sair da viatura com impulso fazia os joelhos doerem.

Respingos de chuva caíam sobre mim. Aproveitei o momento. Ali, sozinha na escuridão do céu, tentei colocar os pensamentos em ordem, aproveitando o instante de paz. Sabia que ele acabaria assim que chegasse em casa. Sabia que lidar com familiares era pior do que lidar com criminosos.

Virei à direita, entrando em uma avenida movimentada. Acelerei novamente, ouvindo o motor roncar. Era meu som predileto.

Estava atenta a todos os sentidos do caminho, frequentemente olhando pelo retrovisor.

Eu era mulher. Era policial. Era a junção de duas coisas subjugadas pela sociedade. Embora amasse a profissão, reconhecia os riscos dela; por isso sempre estava alerta.

Durante o restante do percurso, passei por um grupo de rostos conhecidos: homens e mulheres ligados ao crime, os quais já revistei inúmeras vezes, reunidos em roda num beco mal iluminado. Não ousaram olhar para mim. Odiavam-me, e era um sentimento recíproco.

Embora não fosse religiosa, acreditava na existência de um ser superior à egoísta humanidade, então agradeci a ele quando adentrei a garagem. Retornei após mais um dia arriscado de trabalho.

Porém, assim que entrasse na casa, deixaria de ser a Soldado Nely.

— Pérola!Davi gritou e correu até mim, enroscando as mãos pequenas nas minhas pernas. Peguei-o no colo. A recepção calorosa de meu irmão me arrancou um sorriso sincero. Beijei a bochecha gorducha e o coloquei de volta ao carpete.

— Pensei que ia dormir na casa do Soldadinho mais uma vez — Jasmim murmurou. Encostada à parede e de braços cruzados, minha mãe não me desejou boa-noite, sequer notou que era uma dádiva eu ter voltado viva. Apenas me encarou, tipicamente estressada.

Meu sorriso deu lugar a uma expressão neutra.

Ignorei-a. Jasmim queria que eu dissesse apenas uma palavra com a entonação errada para então discutirmos.

Encontrei Cairo, meu avô materno, sentado à mesa da cozinha, em silêncio com Paulo — o atual e segundo marido de Jasmim, pai de Davi.

Olhar para ele era sempre um sacrifício.

Por causa de Davi, suportava o nojo que o rosto de Paulo me causava. A presença dele fazia bem para o pequeno, e esta era a única razão que me fazia aturá-lo.

Um olhar para o auxiliar doméstico lavando as louças do jantar me fez perceber que não havia comida para mim. Não porque passávamos necessidade — tínhamos uma boa condição financeira —, mas porque não se importaram comigo.

Teu Paradoxo Sou EuOnde histórias criam vida. Descubra agora