Quando você está com ele, você fecha os olhos e pensa em mim.
(Hurt You, The Weeknd)
Bertore se demorou bebendo o café. Bebia, mas não degustava. Escolhia mentalmente as palavras certas para responder à pergunta.
— Eles a veem como uma ameaça. — Fez uma pausa. — Os lobos vivem temendo uma guerra com os humanos. Morremos, se for necessário, para que não nos descubram. Você veio do meio humano e servia a ele como policial. E, Pérola, você estava com Xandre Baldassare.
Finalmente, bebi o café. A amargura que senti não tinha nada a ver com o gosto.
— É compreensível.
Os humanos eram mais fracos do que os lobos, além de numerosos. Embora o meio sobrenatural tivesse a magia, a força e a imortalidade a seu favor, os humanos tinham a necessidade incansável de matar tudo o que fosse diferente e representasse perigo. Uma guerra entre as raças causaria danos imensuráveis. Mas eu havia convivido com lobos tempo o suficiente para entender que eram altivos. Sentiam-se superiores aos humanos, e, provavelmente, massacrariam sem piedade. O problema deles comigo remetia a Baldassare. Eles realmente temiam o Supremo Alfa dos Leões.
— Eles temem que eu seja aliada de Xandre? — Balancei a cabeça, incrédula. Café respingou no chão com o movimento. — Eles são burros? Não veem a quantidade de mortes que Xandre causou? Que sequestrou o meu irmão? Sem contar que... O que fez comigo.
Eu nem percebi que havíamos parado de caminhar. Poucas pessoas passavam pela praça arborizada. Éramos somente o vento, os passarinhos nas árvores amplas, o sol ameno, Bertore, a fera em mim rugindo no interior e eu.
— Estavam olhando para a tatuagem em seu braço.
Encarei a leoa que Bertore indicou. Os olhos atentos dela adiante. As patas traseiras prontas para alcançar a presa. Disciplina, perseverança e ação.
— O que é ainda mais estúpido. A leoa significa apenas... — Respirei fundo. Eu só havia dito isto a Xandre. Soltei uma risada rouca e fraca. Ele devia ter me achado uma idiota quando contei. — Um apelido que meu pai me deu.
Bertore ergueu as sobrancelhas quase de modo imperceptível. Com reação diferente de Xandre, não lançou elogio. Não fez perguntas. Não olhou para o desconforto em meus olhos.
— Eu teria sentado com você. Mas o ambiente a incomodou. — Bertore finalmente me olhou. — Precisamos conversar.
Sorri sem humor. É claro que precisava dizer algo. Por qual outra razão caminharia comigo?
— Tudo bem. Seja direto. O que Lopel o incumbiu de repassar?
Por que levaria à cafeteria uma fêmea de humor ácido, que agora insinuava que ele era submisso ao pai? Era evidente que Lopel passara o título de Supremo a Bertore por formalidade. O Ancião estava por detrás de cada ação do governo do filho.
Bertore se aproximou de mim. O torso a centímetros do meu.
— Está afirmando que sou um mandado de meu pai?
— Tem outra interpretação para isso?
Ele rosnou. Rosnou alto. Um aviso de que eu estava atravessando um limite.
Bertore era ainda maior de perto.
— Eu sou o Supremo. — Em seus olhos, ainda comuns, estava implícito o complemento: "O seu Supremo". — Apesar disso, ele é meu pai. Eu me preocupo com cada pensamento dele. Cada conselho.
Bertore governava há poucos anos. Era esperado que ainda se apoiasse na vasta experiência do pai em vez de criar e viver as suas, por sua conta e risco e sabendo que o bem-estar da alcateia era o objetivo principal, senão único. O medo de arriscar e a submeter à crise o impedia, provavelmente, de ter decisões autônomas.
Mas aquilo tudo ia além das minhas próprias experiências. Eu via a situação do ponto de vista de alguém que teve amadurecimento precoce e se responsabilizou por si mesma antes de chegar à fase adulta. Aquilo tudo ia além dos meus próprios problemas. Então, somente assenti. Fingi concordância, dando o assunto por encerrado.
Não foi o bastante para Bertore.
— Pérola. — Voltei o rosto erguido para ele. — Não ouse dizer isso. Não quando isso é a razão de ele estar transtornado.
— Como assim?
— Meu pai tinha dois irmãos que considerava leais. Mas Liris e Tório escolheram o irmão que ele desconsiderava. — Suas palavras eram contidas. — E hoje eu exigi que ele entrasse em contato com a irmã que o abandonou. Por você.
O nosso único meio. A nossa única chance de encontrar meu irmão.
A situação se concentrava no ego: o orgulho de Lopel era ferido ao voltar a falar com Liris; o de Bertore era, também, ao submeter o pai à situação desconfortável; e o meu era destruído ao pensar que faziam o mínimo por mim, porque haviam me colocado na situação. Colocaram a mim, e a minha família. A metade já morta.
Talvez fosse a angústia em seu olhar, que estava tão... humano. Sincero.
Talvez fosse a impossibilidade da circunstância.
Ou a raiva.
Ou, talvez, fosse a loucura.
Mas eu fiquei na ponta dos pés e o beijei.
O Supremo Alfa dos Lobos passou o braço por minha cintura e me manteve no lugar para que... Deuses! Quase gemi quando a sua língua encontrou a minha. Ela reivindicou com raiva cada lugar que tocou.
Não fomos delicados. A voracidade de nossos lábios representou com exatidão as emoções que nos perturbavam.
Espalmei a mão em seu peito. A cadência dos batimentos cardíacos estava levemente alterada. Não estavam estrondosos como ficavam os de Xandre quando ele me beijava com possessividade. A respiração não estava ofegante como a do peito muito maior ficava quando eu passava as unhas por seu pescoço.
Eu estava inconscientemente repetindo o movimento com as unhas.
Bertore gemeu. Parei, bruscamente, assustada. E me afastei.
Eu estava pensando em Xandre enquanto beijava Bertore. Isso não era justo.
Pela primeira vez, um pedido de perdão conseguiu sair sem dificuldade de mim. Sem arrebentar a garganta.
— Desculpe.
Eu me sentia suja por ter imaginado o sequestrador de Davi. Por ter lembrado dos beijos de um Xandre irreal, um personagem que ele havia criado para me enganar.
— Pelo quê, Preciosa? Eu pareço arrependido para você?
Eu não conseguia, nem queria, desvendar a expressão de Bertore. Queria o quarto. Ficar na escuridão dele remoendo a minha própria.
Sacudi a cabeça.
— Me conte seja lá o que for no jantar. Jante comigo, e então conversamos.
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Teu Paradoxo Sou Eu
FantasyNely prefere erguer a arma para criminosos do que conviver com a própria família. A policial autêntica trabalha arduamente para conquistar a independência, seguindo o legado do pai. Nesse processo, a disciplina a conduz: deixou de fantasiar com a vi...