Oh, é apenas eu, eu e eu
Caminho sozinho até morrer
Porque eu me tenho pela vida
(Me, Myself & I, G-Eazy feat. Bebe Rexha)
Assim que saí da sala, perdi a fala. Eu não queria conversar com a mulher que me direcionou ao quarto. Respondia-a apenas com acenos de cabeça. Às vezes, sequer a ouvia. Ela foi cordial ao me trazer alimento e preparar um banho. A comida, embora parecesse apetitosa, não tinha gosto; a água morna do chuveiro perdera a capacidade de me relaxar. Eu me sentia desassociada daquele ambiente. Sequer prestei atenção em seus detalhes.
Ainda me sentia fraca depois de comer. O abalo psicológico que sofri fez minha cabeça latejar e meus nervos implorarem por descanso. Contudo, a ansiedade não me deixava fechar os olhos. Eu só dormiria quando não conseguisse mais lutar contra a necessidade fisiológica. Enquanto isso, pensaria e repensaria no que aconteceu.
Desde que a baixa e linda ruiva deixara o aposento, eu estava deitada na cama. Um roupão me cobria, apenas.
Abracei meus joelhos, em posição fetal.
Meu celular estava na mochila que ficou na casa de Baldassare. Não havia nenhum telefone no quarto. Pensei na possibilidade de ligar para o batalhão e os noticiar sobre o sequestro, quando achasse um telefone na casa do Supremo. Analisei as consequências do ato. Eu não sabia se haviam mentido para meu trabalho sobre a razão de meu sumiço. Provavelmente, sim. Eles pareciam realmente preocupados em ocultar a existência de sua raça, e humanos não eram bem-vindos. Assim como fizeram comigo a vida inteira, armaram uma mentira para os meus superiores militares.
O que eu diria quando ligasse? Fui raptada por homens que se transformam em lobos? Óbvio que não. Não acreditariam. Apenas alegaria o cárcere privado. Contudo, teria de relacionar o nome de meu avô ao ocorrido.
Fechei os olhos.
Droga! Não tinha uma forma simples de explicar a situação sem parecer um maldito trote. E, além disso, O Supremo Alfa dos Lobos me alertara: haveria consequências se eu quebrasse o acordo, ou eles; possíveis punições desconhecidas advindas de um ser sobrenatural poderoso, uma deusa chamada Anara. O único motivo que me fez aceitar alimento daquela mulher, além de minha extrema fome após quase um dia sem comer, foi o fato de que o alimento não poderia estar envenenado: percebi que se tentassem se livrar de mim, também lidariam com a Deusa. Não poderiam me matar. Não havia subterfúgios. Restava-nos acatar ao acordo.
— Deusa desgraçada.
Respirei fundo. Cairo disse que humanos não podiam entrar no território da alcateia. Eu suspeitava que magia, como a de Cairo, os protegesse deles. Chamar reforço era, infelizmente, uma ideia tola. Mesmo que policiais conseguissem adentrar, seriam mortos. Eu reconhecia que lobos eram poderosos. Não duvidava que Cairo os auxiliasse com feitiços para destruir os humanos invasores.
Arregalei os olhos, dando-me conta de que até mesmo minha raça fora tirada de mim. Teoricamente, não era humana por causa do tratado me envolvendo antes de meu nascimento, destinando-me à alcateia de Bertore, e, também, porque o sangue de Cairo corria em minhas veias.
Mas...
Jasmim e Davi também o tinham, mas eram humanos. O que me fazia diferente deles? Por que eram humanos e eu, unicamente, não?
Busquei explicações, mas nenhuma fazia sentido, e senti uma dor fina na nuca. Estava exausta e com enxaqueca.
As janelas do quarto estavam fechadas, mas o relógio na mesa de cabeceira indicava a noite.
Me sentia roubada de mim mesma. Impotente. Os resquícios que indicavam o que eu fui, até um dia atrás, logo foram retirados: a arma foi levada pela mulher; a farda retirei, mas não deixei que a levasse, embora alegasse que iria a lavar. Não. Aquilo era demais. Ela concordou. Deixei a farda na poltrona próxima à cama. Mas não conseguia a olhar. Eu era uma policial patética e miserável. As circunstâncias me deixaram assim.
Como estaria Davi? Teria perguntado por mim àquela altura?
Solucei. Pensar nele era como atirar contra a minha própria cabeça.
Abracei com mais força os joelhos.
Eu precisava o ver. Jasmim poderia não querer ser minha mãe, Cairo havia me traído, mas Davi continuava a ser meu pequeno irmão. Mesmo distante, era o único membro da minha família. Talvez, a única força que me impulsionava a não desistir.
Fechei os punhos ao pensar em Xandre Baldassare. Um ser sobrenatural, comandante de homens que se transfiguravam em leões, e que, com fria conduta, se infiltrara no meio social humano, passara-se por policial, amigo e amante com o intuito de se aproximar de mim. Eu caí em sua lábia com tanta facilidade. Seu jeito carismático, engraçado e sedutor encobriam um sociopata. Devia ter seguido meu instinto assim que o vi: afastar-me. Baldassare visava apenas a si mesmo e sua vingança ardilosa contra o Supremo Alfa Bertore. Logo ele, a quem eu acreditava ser empático e um líder bondoso, sempre tendo o bem-estar de nossa equipe como foco, usava-me para um propósito vil e que beneficiava apenas seu ego. Nada, nenhuma razão, justificava brincar com os sentimentos e a vida de outra pessoa. Principalmente um motivo que envolvia briga por poder, como supus. O Supremo Alfa dos Leões em rixa infantil com o dos lobos.
Eu queria esganar a ambos com minhas próprias mãos.
Aquele desgraçado agora devia estar rindo da forma em que acreditei em suas mentiras. O que pretendia? Levar-me para seu bando e me torturar apenas para ferir a Bertore? Como Bertore alegara, se ele não cumprisse o tratado com a Deusa, assim como Cairo e eu, haveria consequências contra sua vida. Ele era poderoso e as temia, conclui que eu deveria as temer, também.
As horas se passaram e minha mente não parava. Cheguei ao ponto de não conseguir me concentrar em meus próprios pensamentos. Apática, totalmente apática.
Cairo estava, naquele momento em que eu quase entrava em surto psicótico, em algum quarto daquela casa. Eu via sua permanência ali, naquela noite, como uma forma de me tranquilizar e me deixar segura de que ninguém invadiria o quarto em que eu estava.
Eu me odiei quando fechei os olhos; não quis assumir que Cairo estar por perto foi uma das razões que diminuiu o estado de alerta de meu cérebro. Com as luzes totalmente acesas, adentrei um sono tenso odiando a mim mesma, desejando ter as forças recuperadas para o dia seguinte.
Eu enfrentaria humanos, lobos, leões e deuses para resgatar aquilo que me pertencia: minha liberdade de viver e sonhar. Se isso significasse morrer lutando, eu estava disposta.
Com um suspiro, semi-inconsciente, balbuciei uma última maldição à Deusa Anara.
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Teu Paradoxo Sou Eu
FantasíaNely prefere erguer a arma para criminosos do que conviver com a própria família. A policial autêntica trabalha arduamente para conquistar a independência, seguindo o legado do pai. Nesse processo, a disciplina a conduz: deixou de fantasiar com a vi...