Parte 3: Paradoxo - Capítulo 21

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A saudade que mais dói é a do abraço não dado e do "te amo" não dito.

 (Sinfonia do Adeus, Baco Exu do Blues)

A dor possui muitas faces. Pode ser visível. Assim como pode ser um monstro que dilacera em silêncio, internamente. Um ser que se alimenta de memórias do que poderia ser feito, e daquilo que não foi.

Em certo nível da dor, as lágrimas somem. A tristeza vira um espaço vazio e que somente ecoa. Ruge apenas para quem a sente.

E eu sentia. Ao amanhecer até o anoitecer, quando o sono virava um amigo distante e que fazia falta.

Duas semanas após o sequestro de Davi, eu estava na base de treinamento da alcateia de Bertore. Na primeira seguinte ao ocorrido, em que eu estava desidratada após chorar incansavelmente, o luto me envolvia. Não queria pensar no que havia acontecido a Davi. Tantas possibilidades. Tantos modos de assassinato. E não víamos nenhuma solução. Existia solução? Na segunda, lembrei do ego que conviveu comigo a vida inteira. Também lembrei do ódio, que gerou o desejo sombrio da vingança. As possibilidades do que havia ocorrido ao meu irmão de 6 anos viraram as possibilidades do que eu faria a Xandre Baldassare. Mesmo que eu morresse, e isso já não importava, eu o faria sangrar. Faria o Filho de Anara sangrar. E a sua geradora sentiria a dor de ver a vida que criara morrer. Ir para o inferno. Sentiria o peso insuportável do luto que corroía a minha alma.

Por isso eu treinava com o Supremo Alfa dos Lobos. As técnicas de luta corporal, especificamente para oponentes sobrenaturais, chamavam a atenção dos muitos lobos que frequentavam a extensa quadra coberta. A luz solar vinda das paredes de vidro tornavam o ambiente dourado. A iluminação transmitia a energia necessária para aguentar as sequências de golpes que Bertore havia me mostrado.

Hoje o treino não é com ele. Foi chamado para uma reunião repentina com Lopel. Croix me instruía desta vez, e os olhos curiosos estavam desatentos de nós, como se a presença do lobo loiro não fosse tão interessante quanto a do Supremo. Prefiro assim. Porque cada olhar inquisitivo despertava raiva primitiva em mim. Despertava... aquilo. Aquele ser que eu não queria reconhecer. Que tentava não notar sua presença e controlá-lo para dentro, para fundo. Eu não o evoquei desde a sua primeira aparição no jardim. Não queria uma segunda. Os nós dos meus dedos ficaram roxos após espancar o rosto de Cairo. Tive força para derrubar o Feiticeiro. Resisti ao puxão do Supremo.

Eu não me arrependia. Reconheci que Cairo merecia mais do que meros socos. Na verdade, o que me assustava e tirava o sono era a lembrança do medo nos olhos dos dois machos. Medo do que viram em mim.

Embora evitasse falar disso com Bertore, ele havia me dado a descrição durante um treino do que vira: "Seu olho esquerdo reluziu em ouro. O direito em azul-marinho. Eu... Nunca vi nada semelhante, Pérola. Eram cores diferentes, mas ao mesmo tempo iguais".

O ser continuava à espreita, irracional e pronto para matar.

O imbecil do Croix, porém, estava mais do que disposto e curioso para atiçá-lo. Eu sabia que ele estava falando bastante merda a fim de me irritar e despertá-lo.

No chão, tentei sair de sob o seu corpo pesado. Desviei de um soco certeiro antes que atingisse meu rosto. E, diante do alerta, prestei atenção no que dizia a mim e para o lobo mais próximo que nos observava. Amigo dele. Havia entrado no tatame escuro absorta o suficiente para sequer cumprimentá-lo ou perguntar seu nome.

— Também saía de debaixo do Baldassare quando ele a pressionava, ou é só comigo?

A lembrança trazida à força de Xandre se movimentando cuidadosamente sobre mim me deu força para empurrar Croix e obter a vantagem. Direcionei o punho rapidamente à sua mandíbula. Ele desviou facilmente. Algo semelhante a um rosnado escapou de minha garganta.

Teu Paradoxo Sou EuOnde histórias criam vida. Descubra agora