Capítulo 16

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Sou composta por urgências: minhas alegrias são intensas; minhas tristezas, absolutas. Me entupo de ausências, me esvazio de excessos. Eu não caibo no estreito, eu só vivo nos extremos.

(Clarice Lispector)


À madrugada regada pelo silêncio, os sentimentos me sufocavam. As luzes acessas no quarto não eram o suficiente para afugentá-los. Eu não sentia alegria. Nem tristeza. Sentia a pior sensação: o nada. O vazio preenchendo o peito.

Abri as janelas de vidro e fui à sacada.

A camisa que eu vestia não me pertencia. A sua cor branca contrastava com o preto da calcinha abaixo. Qual ato era mais masoquista: trajar pouca roupa no frio, ou vestir a camisa longa de Baldassare que veio oculta entre as minhas blusas? Quem a trouxe não poderia imaginar. Mas eu sentia o cheiro. Não de boas memórias. De traição. Sim, eu precisava sentir completamente o cheiro horrível do desrespeito para, então, deixá-lo para trás sem lembranças.

Abracei-me sob o luar. Às vezes, o vento enxugava algumas lágrimas solitárias.

Perdida na noite adentro, fui despertada por duas batidas firmes, porém baixas, na porta. Bertore. Como pude confundir as batidas longas de Ebela com as concisas dele?

— Estou acordada. Entre. Na sacada.

Eu não havia trancado a porta.

Não houve resposta. Teria me ouvido? Concluí que se o seu faro era de lobo, a audição também seria.

Pulei para trás. Bertore surgiu a meu lado.

Eu demoraria a me acostumar àquilo.

A vistoria a seguir foi espontânea. Sem rasgos nas roupas. Não havia sangue. Todos os membros estavam no lugar. Observei o seu corpo tecnicamente, assim como fazia com os militares que me acompanhavam nas patrulhas quando voltavam de conflitos.

Apenas encontrei um semblante misterioso. Desta vez, vestia farda militar idêntica à de Lopel.

Pigarreei para afastar a voz embargada.

— Isbel está bem?

Bertore apoiou as mãos no vidro da sacada. Ao virar apenas o rosto em minha direção, vi os seus olhos de lobo novamente. Quando ficava assim, eu tinha a sensação que seu lado mais primitivo estava no controle, e não o racional.

— Minha sobrinha está bem. Agora está com os pais. — Como eu esperava, sua voz se tornava mais gutural assim como os olhos. Profunda. — O garoto realmente se encontrava na localização que nos deu, mas Isbel, de acordo com o que ele disse após ser... confrontado, havia voltado para casa. Senti verdade em suas palavras. Então, nós passamos a procurar nas redondezas, e nos possíveis caminhos que trazem à alcateia.

Aproximei-me dele, tocando o vidro próximo à sua mão.

— Onde a encontraram?

Com a outra mão, puxei a barra da camisa para abaixo de minhas nádegas. Os olhos sem pupilas acompanharam o movimento. As narinas se inflaram. Demorou-se antes de retornar à minha face.

— Correndo na floresta. — Ao perceber a confusão em meu rosto, ele completou: — Em sua forma lupina.

— Acredito que isso seja... comum para um lobo?

— Está certa. — Ele fez uma pausa, como se ponderasse alguma coisa. — Esqueço às vezes que Isbel é apenas uma menina. Na idade dela, eu fazia coisas piores.

Novamente o termo menina. Olhar para a beleza jovial de Bertore me fazia esquecer sua idade. Em comparação à Isbel, seu corpo aparentava ser poucos anos mais velho. Se não o conhecesse, diria que tinha trinta anos.

Teu Paradoxo Sou EuOnde histórias criam vida. Descubra agora