Capítulo 3

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Eu sei que se estou assombrando você, você deve estar me assombrando

É para onde nós vamos

É onde estaremos

(Beyonce, Haunted)


— Fala com tanto ânimo que até parece gostar de trabalhar no dia de folga — Baldassare observou.

Encarei suas írises amareladas, tão brilhantes e claras que quase pareciam artificiais.

Ajustei o maiô preto ao corpo, suavizando a marcação nas nádegas, que pareciam o engolir. Baldassare acompanhou o movimento com um sorriso malicioso.

— Ânimo é algo que não tenho agora. Mas sim, eu gosto de vir trabalhar. O batalhão é como a minha casa. — Talvez o único local que eu considero como casa, completei mentalmente. — Acredito que assim que eu lidar com aqueles pequeninos, vou ficar mais animada.

Indiquei com o queixo as crianças na borda da piscina. A segunda professora as organizava em uma fila.

— A busca por apartamento foi negativa. Mas acredito que as circunstâncias vão melhorar. Enquanto isso não acontece, Pérola... Minha proposta de vir morar comigo permanece.

O semblante suave me transmitiu acolhimento. Eu conseguia ver em seu rosto todo o consolo que gostaria de me oferecer, embora soubesse pouco da razão que me impulsionava a encontrar imediatamente outra moradia, mas não oferecia por respeito a mim. Eu não gostaria que oferecesse. Era uma concepção minha, de caráter pessoal: queria crescer sozinha, por mérito e conquistas próprias. Morar com ele não era sequer uma opção.

Meu silêncio tranquilo foi a única resposta.

Como o bom profissional que era, ele olhou ao redor, constatando se estávamos afastados dos outros, e então beijou demoradamente o canto de minha boca.

Uma quase risada saiu de mim.

— Com tanta preocupação com quem estava nos observando, achei que ia me deixar nua ou algo do tipo.

— Vou anotar a sugestão e a aplicar em outro momento, quando estivermos sozinhos — prometeu, piscando um olho.

— Como consegue ser gentil e cafajeste ao mesmo tempo? Para mim, essa é uma combinação maravilhosa.

O sorriso que dei a ele fora totalmente sincero. E o fez rir também.

Analisei se não havia nenhum colega de trabalho ou câmera por perto, então envolvi seu pescoço e o beijei. Um beijo lento, porém, breve, que entregava a ele minha gratidão. Eu reconhecia que todas as suas brincadeiras eram para me distrair e me tirar do descontentamento.

— Bom trabalho — desejou com os olhos brilhando à luz solar que refletia na água da piscina.

— Para nós dois.

Ele se afastou.

Logo mergulhei. Por Baldassare, fiz uma prece mental, e irreverente, a qualquer que fosse o deus que escutasse. Contudo, enfatizei o pedido: que o protegesse, e que tudo ocorresse bem na sua patrulha.

Então, emergi na superfície da água, ajustando a touca de natação na cabeça.

— Vamos, querida, você é a primeira — chamei gentilmente a primeira criança da fileira. Eles estavam acostumados com o procedimento, então ficaram quietinhos enquanto eu os instruía. — Ela é a primeira porque na última aula aprendeu a flutuar. Vi que alguns ainda têm dificuldade nisso, têm o medo de afundar, então quero que a observem.

A menina saltitante se sentou na borda. Com cuidado, peguei-a no colo e a levei até o meio da piscina.

— Prestem atenção! — Soltei-a deitada de costas na superfície da água. Ela flutuou e sorriu atrevidamente para seus colegas. Fiquei atenta quando ousou mexer as perninhas e saiu, por alguns segundos, para longe de meus braços que a espreitavam sob a água. Eu sorri, feliz com sua evolução. — Percebam que ela não prende a respiração, porque se fizer isso, afundará. Respira normalmente e não sente medo de cair, pois sabe que a água eleva seu corpo.

De repente, ela ficou de bruços e bateu, em ritmo, seis vezes as pernas contra a água. Deixei-a me mostrar o que havia aprendido, seguindo-a, em seu encalço por tempo o suficiente para segurá-la no final, quando se desiquilibrou, não a deixando afundar.

— Parabéns pela evolução! — disse, colocando-a de volta à borda. — Agora, cada um de vocês tentará repetir o que ela fez. Não se preocupem, é normal sentir medo até aprender a confiar na água, mas vou estar logo atrás, segurando cada um.

Voltei a atenção para o próximo aluno.

— Voltou para as aulas! Fico feliz que o machucado em sua perna tenha sarado. Venha... — interrompi-me. 

Eu estava prestes a chamar o menino quando avistei um homem, próximo às árvores, nos observando.

Observando-me.

As sombras delas ocultavam seu rosto.

Chamei a outra professora, que estava sentada com algumas mães, para dentro da piscina.

— Ela vai continuar o processo com vocês. A obedeçam! Eu volto logo.

Saí rapidamente. Utilizei-me de uma face calma enquanto tentava me lembrar se já tinha visto ali alguém tão alto, aparentemente forte, e com vestes elegantes. Poderia ser um policial à paisana, ou o parente de algum aluno. Porém, algo na sua postura imponente me chamou a atenção, me deixou alerta.

Mais alguns passos e conseguiria observar com clareza seu rosto. Percebi que estava encostado num tronco de árvore, com os braços cruzados. Parecia sereno.

— Tia Pérola, olha, olha, Tia Pérola! —  uma voz alegre e esganiçada me chamou.

Parei de caminhar, voltei o rosto para o menino que flutuava na água e sorria amplamente. Eu bati palmas para ele e o parabenizei.

Concentrei novamente a atenção à frente. Busquei a presença do homem enigmático que ali estivera. O sorriso em meu rosto se desfez aos poucos, dando lugar à surpresa.

Não havia ninguém.

Teu Paradoxo Sou EuOnde histórias criam vida. Descubra agora