Sobre o amanhã

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—Preparada para amanhã, querida?– Benjamin perguntava à sua filha de lá do outro lado da mesa gigantesca enquanto não tirava os olhos da comida.
—Não–Respondeu sem nem ligar para o assunto que seu pai estava colocando em pauta.
O assunto, este, nada mais era além de um dia de aliança com seu povo.
Onde ela e Demian se enfiaram em uma charrete velha e esquisita que os servia desde os tempos da escola para passar por algumas ruas e praças para ver os idiotas que os idolatram. Ou melhor, o povo que eles governavam.
—Isso te deixa ansiosa?–Perguntou, enfim , tirando os olhos do prato para olhar Hella.
—Não. Eu só não queria ir.
—É injusto que não queira ir.
Faço de tudo por você, porque não pode simplesmente aceitar sair com o que você julga seu parceiro de realeza para ver seu próprio povo.
—Sabe que não é só isso.
Eu vou estar aceitando toda essa coroação idiota em meu nome em alguns meses.
Eu não gosto de carregar coroas feitas de sangue e sofrimento.
—Coroa feita de sangue e sofrimento?– Benjamin continuava a encarar a menina incrédulo com seu descontentamento com algo que parecia ser o sonho de todas   as garotas. Ser a rainha do grande clã da luz.
—Isso aí que não sai do seu lado dez segundos– Ela apontou com desdém a bela coroa pendurada na cadeira de seu pai.—Nem para comer você larga isto.–Disse, pegou o garfo 
E voltou a comer.
—Pelo menos não está em minha cabeça.– Benjamin deu de ombros.—Me diga, não quer ir amanhã pois vai ser sua cerimônia de aproximação de posse?
—Não quero ir amanhã pois aceitaria isso–Respondeu de súbito e obteve uma risada quase muda de seu pai.–Qual a graça?
—Você acha que tem alguma escolha sobre isso?
É seu destino.
—Me recuso a seguir o destino que outros traçaram para mim.
—Então saia correndo.
—É o que ela faria?–Hella pergunta e assiste atenciosamente a expressão de seu pai endurecer.
—Sua mãe nunca fugiu de suas obrigações.
—Ponto para mim então.
—Mas eu acabei de dizer o exato oposto de "você está certa".
—Não, não. Você não entendeu.
Lolla nunca fugiu ou fugiria de suas obrigações. Mas todo esse caos que essa maldita coroa representa, nunca foi minha obrigação. Minha vida não é decidida pelas suas escolhas.
—Hella, minha filha, você fala tanto de fazer a diferença. Mas quando você de fato pode assumir o controle e mudar o que julga ser cruel de minha parte, você, como uma criança, se acovarda.
—Talvez eu ainda seja uma criança.–Ri— Sabe, é que eu perdi minha infância nas suas gracinhas reais.
—Você ainda é imatura.–Disse Benjamin enfim terminando de comer.
—Ponto para mim.—Sorriu.
—Perdão, Hella, como?– Encarava a menina um pouco curioso enquanto pegava a coroa em suas mãos.
—Sou imatura, não estou preparada para isso.–Lançou seu argumento mas tudo que teve foi um disfarçado sorriso orgulhoso de seu pai, que estendeu a coroa no ar fazendo a menina acompanhar com os olhos e disse.—Seu raciocínio é rápido, você tem empatia, e o mais importante, você consegue virar qualquer jogo ao seu favor.
Você acabou de desarmar um rei com argumentos, e manteve a calma durante essa espécie de "debate". Parabéns Hella, você só provou ainda mais que merece essa coisinha aqui.–Falou referindo-se a coroa.
—Trapaceiro.
—Eu sou seu pai. Sua inteligência tem que vir de alguém.–Colocou a coroa e foi em direção a porta.
—Veio da Lolla.–Disse como se fosse óbvio e assistiu seu pai sair de lá.—Próxima vez eu vou começar a gaguejar e falar coisas idiotas.
Eu vou ter que andar naquela merda de charrete, quem em sã consciência ainda anda de charrete?–Reclamou uma última vez antes de levantar e sair.

Do outro lado, mais especificamente em Moff Demian encarava um cálice com bebida enquanto batucava com os dedos na mesa.
—O que te deixa inquieto?– Gartelk perguntou encarando o filho com o olhar baixo e frio de sempre.
—O fato do amanhã estar próximo demais–Respondeu sem pensar muito.
E que erro. Seu pai gostava de respostas verdadeiras, profundas e sinceras.
—Inquietude vem de junções, vem de estar ansioso para algo, sentir que algo vai acontecer, saber de algo iminente mas que ainda assusta da mesma forma, vem de passado e presente, ideias opostas. Inquietude vem de se encontrar em caos consigo mesmo. Não me dê respostas vazias. De vazio já basta você, Demian.
—Eu machuquei alguém.
—Isso deveria ser a parte boa?
—Eu não sou você.
Eu machuquei alguém, não é essa parte que me importa na verdade, é o fato de que é melhor para ela assim, no entanto, ela é teimosa e burra como uma pedra. Vai continuar me enchendo e insistindo. Irritante.
—Ah, então, veja bem, siga seu próprio raciocínio.
Blablablá sou um rebelde sem causa, blablablá, machuquei uma garota, blablablá é o melhor para ela, blablablá ela vai tentar contato.
—Você tem algum tipo de retardo?
—Não, você tem.
Pense no que é melhor para você.
Se ela é irritante, mate.
—Não é possível que você esteja realmente me mandando matar alguém assim, por algo tão banal.
—Sua interpretação é tão ignorante quanto você.
Não mandei você matar, apenas dei a sugestão.
Se matar a ordem não foi minha.
Lide com seus desejos estranhos.
—Não vou matar ela.
—Então ameace.
—Eu não vou matar ou ameaçar alguém por simplesmente querer se aproximar de mim.
Ainda mais alguém que conheço desde a infância.
—Ah, é a garota do clã da luz.
Pensei que você fosse se casar com ela para ter o poder do clã da luz e depois matar.
Isso é, se você conseguisse antes de ela te matar.
—Você é um tremendo filha da puta, sabia disso?
—Ah, fico lisonjeado.  Já falaram isso diversas vezes. Nunca perde o tom de admiração.
—Você me dá nojo.
—Sente algo pela garota?
—Você pensa? É óbvio que não.
Não sinto nada por ela.
—Digo, você está inquieto pensando sobre se machucar para não machucar ela.
Entre duas uma, ou lhe falta neurônios ou sentimentos consumiram seus neurônios.
—Ela foi uma boa amiga...quando eu tinha catorze anos.
Agora eu vejo que é um erro estarmos próximos. Somos totais opostos. E o máximo que eu vou fazer é machucá-la.
—Sinceramente, não sei porque isso importa de alguma forma.
Mas se importa, arranje um jeito de tirá-la de perto de você. Mesmo contra a vontade dela.  A questão é, fazer ela não querer nunca mais te ver.  Mas você é fraco para isso, Demian.
Diz que agora percebe, mas ainda é o garoto de anos atrás que não consegue fazer algo mesmo sabendo que é o certo porque não sabe lidar com riscos, consequências, ou lidar com tirar a vida de alguém.
—Chega!– Disse finalmente subindo os olhos para encarar o pai.
—Ainda é o garoto que tentou me acertar com uma faca cega porque perdeu a mãe.
Ainda é um impulsivo idiota.
Ainda trava quando falamos dela.
Você não mudou. Só fingindo não ser uma criança assustada que precisa de aprovação.
—Eu queria que quem estivesse morto fosse você.
—Ah, que droga. Errou o time, garoto.– Gartelk riu, levantou e caminhou tranquilamente até onde seu filho estava sentado, tirou a sua espada das costas e colocou em cima da mesa, a frente do cálice.—Mas vou te dar uma chance agora. Me mate.
Vai que isso melhore a sensação de ser um inútil. Não, não, espera, você sempre será um inútil.
—Se eu te matasse agora, de que isso adiantaria mesmo? Eu só receberia essa coroa antes do planejado.
E eu já nem quero receber no tempo certo.
—Vamos lá, tome uma atitude, você nem vai sentir nada.
—Justamente– Demian levantou-se calmamente com o rosto erguido e um sorriso de canto.—Não sou você, não preciso matar para me sentir menos medíocre, não preciso eliminar pessoas porque sei que não tenho capacidade para chegar até onde eu quero.
Ao contrário, eu sei do que sou capaz, e te matar não vai fazer a morte dela desaparecer.
Então, papai, eu vou te deixar se condenar nessa vida horrível que você mesmo criou e morrer dentro das condições que você escolheu.
Você não se importa com quem você matou, e te matar não mudaria isso.
Então, morra sozinho, sem se arrepender.
Eu não vou ser você.–Respirou fundo e saiu andando.—Seu desapontamento é música para meus ouvidos.
—Ele não vai mudar, nunca?– Gartelk perguntou a si mesmo enquanto pegava a espada e o cálice da mesa.—Sempre vai ser o mesmo idiota.– Guardou a espada e entornou o cálice.

Gartelk não era o tipo de pai daqueles que você deveria ouvir conselhos.
Mas era inegável que ele estava certo em algo, Demian tinha que arranjar um jeito de fazer com que a garota se afastasse de vez.
Porque, de certa maneira, talvez uma relação tão pessoal fosse ruim para o reino.
Além de que, todos próximos ao garoto só tinham no destino o sofrimento.
Ao menos ele via assim.
Para Demian, estar perto dele era o mesmo de se fadar ao desgaste, dor e amargura.
Querer cuidar dele era o mesmo de estar dando a si mesmo uma maldição.
Era isso, Demian era uma maldição.
A que estragaria tudo e todos que se importassem.
Ele não era digno de amor, empatia, não era digno de conhecer a luz, até seu clã era ruim.
Bastava apenas olhar seu progenitor, só isso já deixava óbvio o quão baixo eram as chances do pequeno príncipe das sombras ser bonzinho.
É como se alguém procurasse em uma alcatéia uma ovelha viva.
Já até teve uma ovelha, mas foi morta tentando proteger o pequeno lobo da maldade do resto.
Um lobo fraco e incapaz de se defender sozinho, deixou que a ovelha, sem nenhuma habilidade predatória, fosse morta.
O que ele deveria fazer agora?
Jogar para longe o último lugar onde se sentia em casa? Sim, seria ruim para ele perder todo aquele conforto...ou o que tinha restado da amizade de infância.
Mas, ele não poderia repetir a história, deixar que alguém teimosa mas que no fundo é indefesa morra por sua causa.
Ninguém merecia morrer por um lixo como Demian.
Ninguém merece dar a vida por alguém que nem quer estar vivo.

Nem mesmo Demian daria a vida por alguém como ele.
O garoto não queria tudo aquilo.
Não queria a coroa, não queria Hella, não queria sua mãe, não queria a espada, não queria nada.
Nem estava pronto para algo.
Ele queria poder entrar no quarto, e nunca mais sair.
Só de estar no quarto e não ouvir as pessoas lhe dando "bom dia" forçadamente e com desprezo estampado na cara já era um ótimo plano para Demian.
Era constante os xingamentos que ele ouvia, não falavam de propósito, óbvio jamais que algum deles iria querer que o futuro rei ouvisse suas ofensas, ninguém era burro a esse ponto, mas, as vezes era por impulso, mal o garoto virava as costas e ouvia "desgraçado", "esnobe", "ele carrega as trevas nos olhos", "a sombra de tudo que há de pior em todo esse homem", "maldito".
Ele poderia virar e mostrar que ouviu, mas não mudaria o fato de todos estarem certos.
Não mudaria o fato de Demian ser uma maldição.
Ser aquele que todos chamam de a perdição, carregar a tristeza junto a si como uma fiel aliada.
Não mudaria o fato de que o garoto continuava a se sentir deslocado em tudo aquilo.
Não mudaria o fato de que ele tinha que levantar todas as manhãs simplesmente por obrigação.
Levar uma vida mais gentil por ser um nobre nunca mudaria a verdade, ele já estava morto por dentro a muito tempo.
Tanto tempo que ele não sabia mais o que era estar bem ou mal.  Ele apenas e infelizmente estava vivo por fora e morto por dentro.
E nada pode mudar isso.



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