Meu povo?

0 0 0
                                    

Demian estava impecável, o que já estava errado, pois pela forma que o mundo o tratava ele já era um pecado. Sua existência foi condenada a isso, um fardo.
Mas ele respirou fundo e pensou: "Que eu morra hoje mesmo. De preferência antes de ver a Hella."
Nada como um dia onde você é obrigado a falar com pessoas que te odeiam, coisas que você odeia, e é claro, sendo forçado por pessoas que você também odeia.
Realmente é revigorante saber que você é sempre obrigado a fazer o que não quer o tempo inteiro. Que mesmo por um milagre você não teria liberdade, porque você teve o azar de ser o espermatozóide vencedor em uma corrida a qual nem sabia que estava participando.
Poderiam ter vencido tantos outros, talvez um egocêntrico sociopata feito seu pai?
Um encantador de mulheres fanfarrão?
Um filho pródigo que com três anos já tenha matado no mínimo cinco pessoas porque lhe dirigiram a palavra?
Um autoritário sanguinário?
Não sei, qualquer outra coisa, exceto um rebelde sem causa que não ligava para nada além dele mesmo, e para ser justo, às vezes não ligava nem para ele mesmo.
Bem, bem, bem, talvez ele fosse um idiota como o pai e assim que pegasse o poder fizesse até pior que ele.
Isso era uma possibilidade que o assustava, mas entre todas as que existiam, essa era a mais real.
Já que, seu lado gentil herdado de sua mãe morreu quando viu ela morrendo.
"O mundo é assim Demian, os gentis primeiro são usados, e depois morrem pedindo perdão."
Ele repetia para si mesmo. Talvez, apenas talvez fosse uma tentativa para negar o monstro insensível que se tornava.
Alegar que é por autodefesa faz até matar se tornar um ato de honra.
Era um pouco mais fácil conviver com seus próprios demônios quando dizia: "Eu tive que fazer isso".
Muito provavelmente nem tinha que fazer, mas era mais confortável do que mudar.
Era mais fácil do que ter que enfrentar os problemas. É mais fácil cortar as mãos ou mesmo matar um ladrão do que investir em uma melhor condição de vida para que ele não precisasse roubar.
Era mais fácil fingir que sua mãe nunca tinha existido do que vê-la morrer todos os dias.
Era mais fácil grudar a apatia na alma do que sofrer toda vez que via crianças, adultos, adolescentes e velhos morrerem em sua frente.
Era mais fácil não ligar. Não doía. E se por acaso doesse… Era só não ligar para a dor.
Não é mais fácil assim? Jogar tudo debaixo do tapete? Fingir que ele ainda não tinha se tornado um frio sanguinário e autoritário que não se importa com ninguém?
Era uma linda peça de teatro…. só que com um fantoche como personagem principal. O fantoche nem sequer era dublado por algum segundo ator, ele apenas não tinha voz.
E parecia ser engraçado para o público ver o pequeno fantoche gritando de desespero enquanto de sua boca não saia uma nota de voz, e de seu rosto tão bem ensaiado para encenar ao palco não saia nem uma gota de lágrima.
Mas sim, no fundo o fantoche estava em desespero e fingia não ligar para não sentir sua criança interior lhe perguntando o porquê ele ainda estava nesse ciclo.
O porquê parecia que cada dia mais ele morria, porque ele apagava as próprias memórias, porque ele fugia de qualquer sentimento, talvez fosse mais fácil apagar a si mesmo do que reescrever os outros.
Ninguém jamais conseguiria reescrever ninguém. Então...porque não fingir que sempre foi o que o teatro precisou... Porque não andar nessa corda bamba com dois pesos para ir te  equilibrando, de um lado saber que já tinha se tornado um monstro, saber que já tinha culpa, saber que já fingiu tanto não sentir nada que agora, de fato, não sentia. E do outro não querer estar nisso, não querer fingir, não aguentar mais.
Não sentir nada mas ao mesmo tempo sentir tanto...era tão controverso...era tão...doloroso.

—Olha só, arrumado, pensei que fosse fugir na primeira oportunidade com um cavalo e um chapéu para pedir esmola.–Demian ignorou o comentário do pai e apenas sentou-se no sofá de frente para ele.
—O que eu devo fazer?
—Não sei.
—Como não sabe?
—Eu não sou você e também não sou eu quem tem que fazer isso. Então não gastei meu tempo pensando nisso. – E por algum acaso você pensa? Demian pensou em perguntar mas apenas respirou fundo.
—Bom, então o melhor seria eu não ir. Nem ao menos sei o que deveria fazer.
Realmente, uma pena.
—Verdade.
—Está me induzindo a não ir?
—Não, não. Eu só concordei com a parte de que você nem consegue saber o que deve fazer.
—Devo?
—Acredito que sim.
—E porquê eu deveria fazer algo se eu não escolhi esse tal destino.
—Eu não escolhi esse tal filho e você está aqui, infelizmente.
—Se eu estou aqui com certeza não foi por você.
—Concordo! Se fosse por mim você já teria morrido. Eu arranjaria um sucessor mais forte.
—Por que não arranja? Finge que eu morri, eu vou para o mais longe que puder sem falar a ninguém em um dia específico, com um plano feito. E em um passe de mágica eu sumi do mapa. Estou morto, e você coloca quem você quiser no trono.
—Não. Isso tira toda a graça.
Se não há mortes, porque eu fingiria?
E mais, seu castigo por ser alguém fraco vai ser levar um fardo enorme.
Então, sim, você é o pior herdeiro que eu poderia ter. E sim, você vai lidar com isso até o dia de sua morte porque nem filhos você quer ter.
—Seu lema é não me dar paz aparentemente.
—Esperto de sua parte perceber.— Fala em tom de deboche— Idiota.
—Sim. Eu sei.
Mas se tenho algum tipo de inteligência não veio de você.
—Ainda bem. Seria uma ofensa dizer que sim.
Já que eu sei como funciona algo que é basicamente "andar e falar com meu povo" .
São duas funções bases.
Você não sabe o que fazer nessa situação? Ótimo que sua perspicácia não venha de mim.
—Insulto mesmo é me compararem a você.
—Parabéns. Eu tenho que concordar, Demian.
Você é um fracassado. Eu não.
E olha que eu tentei te salvar disso, mas você já nasceu fadado à miséria. Talvez seja culpa de sua mãe. Não sei.
Mas a derrota nunca esteve em nosso sangue...exceto depois que você chegou.
Você é uma espécie de mancha na honra de tudo que é bom na nossa família.
—Olha aí, mais um motivos para eu não ir.
Não sou nem digno de estar lá. Fico tão, tão, tão cabisbaixo com isso.
Parece que você vai ter que dar a coroa a outra pessoa papai.– Diz se levantando e soltando o botão da manga da blusa logo depois se afasta andando enquanto leva os dedos aos botões principais.
—Então tá. Vou ser um bom pai desta vez.
Vou realizar seu desejo, Demian.
Vou colocar alguém igual a mim em poder.
E o farei se casar com Hella. Quem sabe ela encontre sua mãe e a mãe dela no céu mais cedo, não é? Quem sabe ganhamos o controle do clã da luz.
—Não toque no nome dela!–O garoto se vira de volta para o pai que se mantinha inexpressivo brincando com uma faca.
—Qual? A defunta ou a futura defunta?
—Cala a porra da boquinha para eu não te fazer calar.
—Você fala mais do que faz. Já percebeu isso?– Demian trava o maxilar e avança em cima do seu pai segurando pela gola da blusa e o jogando deitado no sofá em seguida socando seu rosto.
Gartelk apenas sorri e usa a faca para fazer um corte na lateral do corpo do garoto.
Demian rapidamente o desarma e coloca a faca contra seu pescoço.—Eu podia te matar agora, seu merda.
—Mata. O que você tem a perder? Não tem ninguém que você se importe ainda viva não é? Ninguém que vá estar na rua hoje... ninguém que possa morrer logo depois de mim.– Demian sente o coração parar por alguns segundos enquanto olha para o seu pai. Não, não, não. Ela não.
—Se você fez algo com ela eu–
—Não fiz, não ainda.
Mas...se você me matar... Enxergue isso como um incentivo de pai. É mais fácil viver quando você não ama ou não tem piedade por ninguém.
Então, eu te tiro tudo que você tem, a dor e a alegria. Vai restar o vazio. Mas é um vazio que não é incômodo ou bom.
—Eu quero que você morra.
—Não entendi o que te impede de me matar? Não disse que não sentia nada pela garota?
—Isso iria começar uma guerra diplomática.
E eu repito, eu não sou você,  eu não mato inocentes.
—Ah, que dó! Covarde. –Fala em tom de ironia e empura Demian para longe.—Vai se trocar e fazer um curativo,  você tem um longo dia pela frente.
—Você é um desgraçado.–O garoto levanta e coloca a mão no ferimento.
—Vindo de um frouxo isso é elogio.– Sorri cinicamente enquanto assiste seu filho sair andando na direção das escadas.

A Clave: A Luz Que Reina Sobre TrevasOnde histórias criam vida. Descubra agora