Até onde vão as mentiras

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Hella se perguntava o que tinha na cabeça, e porquê tinha.
Ela beijou Demian. Bom, Ele beijou ela.
Mas não fazia diferença, porque ela não se afastou.
A boca dela aceitou muito bem e com uma vontade inexplicável a boca de quem lhe ameaçou de morte. Não era lá muito bom saber disso.
Era nostálgico beijar o futuro rei do clã das trevas, apesar de seus lábios nunca terem se tocado antes, em momento algum.
Era como estar em casa, de alguma forma.
O que também não está certo. Não deveria estar.
Sentir na boca de alguém que tentou lhe matar conforto, não é lá o sinônimo de saudável.
É hipócrita, porque ela odiava ter beijado ele. Mas odiava porque gostou.
Porque sabia que não teria mais, e principalmente porque queria mais. Sentir o cheiro da chuva misturado ao cheiro próprio de Demian enquanto os braços dele a mantinham perto o suficiente para ouvir sua respiração e encarar os olhos escuros.
Mas, era fácil para o encanto se esvair e só restar dor.
Demian estava longe.
E melhor seria se ele não voltasse.
Partindo da ideia de que, querendo ou não, o motivo que serviu para pivô daquele beijo continuava sendo: traição, abandono e uma ameaça de morte.
O rompimento de um sentimento de anos.
Perder alguém que era sua morada.
Era difícil acreditar em um "eu só vim aqui porque amo você" depois de ter sido passada para trás daquela forma.
Tudo se parecia muito mais com um jogo do que com amor.
Mas tecnicamente o amor é um jogo.
No entanto, claramente não havia amor ali, apenas interesse em tronos e impérios.
O que beirava a ser assustador. Ver que em tão pouco tempo Demian tinha se tornado mais um dos deploráveis reis, que só se importam consigo mesmo e terras.
Ele mandou o próprio homem para matá-la, ele mesmo a salvou, e matou o homem, e em um pequeno momento de baixa guarda a beijou.
Ele sabia bem que os dois nunca dariam certo juntos. Ele nunca sentiu nada por ela. Não demonstrava sentir, muito menos se importar pela forma que a deixou.
Então, porque aquilo seria amor?
Amor não machuca o outro.
Por via das dúvidas, ela seguiu o conselho dele. É melhor que não confie mesmo. Eu não confiaria.
O beijo também foi parte do plano?
Mais para quê? Para deixar Hella atordoada.
A fazer levantar da cama e sair sem segurança alguma, sozinha, na calada da noite para encontrar Demian? Se fosse…estaria tudo dando certo demais.
Ela sentia a brisa bater nos cabelos, grande parte escondidos pelo capuz que usava, enquanto as estrelas brilhavam com autoridade.
Parecia nunca ter havido uma noite mais brilhante.
Até mesmo os olhos de Hella brilhavam. Talvez fossem lágrimas que sumiram em segundos porque ela é uma rainha, prestes a ver um "inimigo" diplomático e antigo melhor amigo.
Qualquer demonstração de fraqueza era burra.
Era confuso demais para ela.
Mas era o que restava.

E quando se deu conta, estava de frente para Demian, ainda na floresta, a grama verde e ele parado com vestes pretas, como sempre, maxilar cerrado e olhos com a cor vermelha.
Mas, o que chamou atenção dela, além de ele aparecer em seu caminho, foram as faixas pretas que enrolavam desde seu pulso até onde as mangas de sua blusa começavam a cobrir.
—O que você quer aqui?– Ele falou com um tom que beirava o desprezo mas ainda acertava a raiva, e a feição permanecia a mesma. Neutralidade. Era como se ele já estivesse morto por dentro.
—Eu quero entender o que foi aquilo.
—Aquilo o que?–Respondeu como se não tivesse beijado a filha da luz após ter matado seu futuro marido.
Hella tirou o capuz azul escuro e encarou Demian mais fundo.
—Você não é tão burro. Ou é?
—Vamos supor, você está desacompanhada, na parte das trevas de Foursend, sendo uma privilegiada, mimada, egocêntrica, e futura sucessora de um clã oprimente e assassino de minorias. Isso é burrice.
Mas, finalizando a suposição, você não é tão burra. Ou é?
—Você adora usar minhas palavras. Não tem capacidade para criar frases?
—Você usa as frases de maneira burra.
Eu só redireciono para você, e como não tem argumentos, você não sabe o que responder.
—Vejo outra coisa.
—Que outra coisa?
—É mais fácil para você esquivar de respostas diretas com minhas palavras, porque isso evita que você use as suas e acabe entregando o que você não quer falar.
—E o que eu não quero falar?
—Eu vou descobrir hoje.
—Claro, Helsing. E vai fazer o que para isso? Matar quem eu amo? Tarde.
Me matar? Você não tem capacidade para me fazer um arranhão.– Demian para por sentir algo em suas costas.
—Ah, sombrinha, eu não me moveria se fosse você.– Hella aponta com a cabeça para trás dele onde criou uma estaca afiada de cristal.— Surpresa!— Ela faz uma espada e a coloca contra o pescoço de Demian.— Você quer ver se eu tenho ou não capacidade para te fazer um arranhão, Demi?
—Não acho que é isso que você veio fazer aqui.
Me matar causaria sua excursão.– Responde sem ao menos descruzar os braços.
—Uau, você tem cérebro!
Não esperava por tal.— Com um sinal de mão os cristais somem e Demian continua a encarando.
—Até agora você não descobriu nada.
Como investigadora, você é uma ótima cuidadora de animais.
—Em parte você está certo.
Cuidadora de animais.
Estou lidando com um animal irracional nesse exato momento.
—Então descobriu o que queria?
—Em parte.
—Então em parte você pode ir embora.
Mal espero para me livrar da outra parte.
—É bem simples.
Me responda o que foi aquilo.
—Não sei do que está falando.
—Anteontem.
—O assassinato? Não gostava dele.
—O beijo. E o que você disse antes.– No canto do rosto de Demian deu para notar uma contração que se tornou um sorriso rígido, fino e cínico, os olhos dele de repente pareciam chama. Ele andou até ela e passou a mão pela sua cintura a deixando sem reação.
Afastou um pouco o cabelo para trás de sua orelha.
—Ah, bom. Foi…foi sinceridade, eu apenas falei o que sentia, sweet hell.–A trouxe mais para perto, pegou as mãos dela e colocou no ombro com delicadeza, e então pousou novamente as mãos na cintura deitando a cabeça no pescoço dela e dando alguns beijos, a vendo arrepiar, a respiração quente, e mais nenhuma palavra.— Mas eu não sei o que é pior, Hella.
Nós não podermos ficar juntos…ou, você acreditar que isso é real.–Ele riu e se afastou.
Era a única forma no momento. Se ele não fizesse de sua demonstração de afeto puramente cinismo, irônia e manipulação, Hella voltaria a querê-lo perto.
Assim como ele queria ela. Assim como ele não podia demonstrar que queria.
—Eu não consigo entender que doença você tem, sabia?
Por que você gosta de brincar com os outros?
Não cansa ser tão filho da puta assim, Demian?
Caralho, eu realmente pensei que você pudesse ter ao menos uma conversa decente.
Mas você é uma criança. Que não sabe lidar com a merda das suas perdas e daí resolve ser igual ao seu pai. Eu também perdi minha mãe, veja só, eu não sou uma babaca que ameaçou meu melhor amigo por causa de um surto aleatório.—Demian engoliu em seco e deu um passo para trás. Palavras machucam. E aquilo era tortura.—Imagino que sua mãe esteja verdadeiramente honrada com o que você fez em troca do sacrifício dela. Você me dá nojo, Demian.–Hella fez uma adaga e a entregou para Demian.— Quer saber de mais algo?
—Diga.
—Eu sei quando você mente. Eu sei quando algo te afeta. Eu sei quando dói. Por mais que nem você saiba.
—E de que isso adianta agora? Digo, depois do seu monólogo de como sou um monstro insensível e imaturo com uma mãe morta e desonrada, querida.
—Que eu sei que você está mentindo para mim.
Que não foi encenação o beijo.
E que muito provavelmente você saiu de sua casa apenas para tentar me salvar.
—Jura?– Demian deixou escapar com certo sarcasmo e Hella continuou sem se importar—Porque enquanto você estava fazendo seu teatro eu analisei, todas as vezes que me aproximo você me afasta dessa mesma forma, mas, você nunca chegou a me machucar, de fato.
Mas eu estou te dando a chance de provar que estou errada.
A adaga é para me matar.– Demian alternou o olhar entre a adaga e Hella diversas vezes.— Vá em frente.
—Nem fodendo.– Ele jogou a adaga no chão. E a olhou de uma forma que nunca tinha se permitido antes.
Um olhar verdadeiramente terno e preocupado.
Dava para sentir mil coisas na expressão de Demian, talvez fosse resultado de tanto tempo prendendo. Talvez fosse o resultado da única coisa que ainda mexia com ele, o bem estar de Hella Helsing.
—O que você está escondendo? Por que está fazendo isso? Você está se matando por dentro.
—Hella, eu não posso. Você não pode…nós não podemos. – Ele sentiu seus olhos encherem de lágrima pela primeira vez em muito tempo.— Você é destemida demais.
Não pensa direito. Olha onde você está!
Você deu uma adaga na minha mão, porque julga me conhecer depois de eu ter te ameaçado de morte.
E eu já estou morto…só não quero perder minha última parte viva… eu só não quero perder você.
—Eu não sou tão ingênua.
Não tanto quanto você espera.
O cristal é meu, eu desfaço a hora que eu quiser.
Poderia te matar se fosse um perigo para mim.– Ela se aproxima e toca seu rosto, olhando com curiosidade.— Você não vai me perder. Por que perderia?
—Sua inocência. Meu pai. Seu ex-noivo é parte do plano. Interesses políticos. Seu pai. Seu clã. Você quer mais quantos motivos?
Quer mais quantas pessoas que te matariam ou para ter poder ou para ter honra?
Porque, por minha parte, meu pai arranjaria um jeito de te tirar do jogo, me tirar do jogo e assumir as duas terras.
E seu clã, eles mesmos lhe matariam caso estivesse comigo.
O que seu pai iria fazer? Matar o próprio clã inteiro?
—Demian, confia em mim. Vai ficar tud– Ele balançou a cabeça de forma impaciente.
—Não fala isso. Para mim não.
Nunca.
Porque não fica Helsing. Nunca fica tudo bem.
E é difícil ter que aceitar isso.
Então, não tenta me dar esperança.
Se você me quer, pode me ter. Mas você sabe os limites disso. Nós não duraremos mais que uma noite.
—Não existem limites. Existem riscos.
Eu não vou desistir de você.
Eu não vou desistir do meu melhor amigo e único amor porque isso pode me matar.
É muito pior ter que ficar longe de você.
Dói muito mais.
Já te falaram que viver sem poder amar é o mesmo que estar morto?–Hella procurou os olhos de Demian.
Ele parecia hesitante quando finalmente a encarou de volta.— Você é a prova disso, sombrinha. E eu não preciso de outros exemplos.– Ele engoliu em seco ainda a olhando.
—Você é teimosa. E cabeça dura.
—Diz que não quer que eu fique. Eu vou embora da sua vida.
Mas, vai ter que ser sincero.
Se você estiver mentindo eu vou ouvir um "quero que fique e cuide de mim" .– Ele riu e baixou a cabeça balançando-a em negação.
—Como se fosse você que cuida de mim nessa relação.
—Ah, você não sabe se cuidar sozinho.
Não tem neurônios para isso.
—Eu já te falei do quão burra você é por estar aqui, não é?
—Sim, Demian.
Só não disse que quer que eu vá embora.
O que por dedução é uma esquiva a resposta direta.
—Suas deduções são quase sempre péssimas.
—Quase sempre.
Mas nesse caso, eu tenho uma carta na manga.
—O clã da luz faliu? Está trabalhando de mágica? Por favor, suma daqui. –Hella riu.
Ficou na ponta dos pés e o beijou.
Rapidamente o garoto a ergueu, esperando ela entrelaçar as pernas em volta dele enquanto mantinha um beijo acelerado e sentia a pulsação aumentar juntamente ao ritmo deles
Hella se afastou um pouco e cruzou os braços em volta do pescoço do rapaz.
—A sensação de domar você é incrível.
E de estar certa é mais ainda.– Ele sorriu e a olhou com os olhos meio fechados.
—Já te contei o quão eu acho atraente esse seu jeito egocêntrico?
—Não. Mas eu percebo.– Em milésimos os lábios já estavam juntos novamente.
E foi assim por um tempo. Sem muita distância entre as bocas, não há longo prazo.
Eles mantiveram os corpos juntos um tanto desesperados pelo calor e cheiro do outro.

Até que Demian resolveu escoltá-la para casa.
De longe.
Mas ainda assim protegendo, como sempre fez.
—De que adiantou esconder tanto…–Já em casa, ele sentou na cama e sorriu.— Eu deveria esperar. Ela é inteligente o suficientes para não deixar passar uma dessa–Começou a desenfaixar o braço.— E eu ainda não entendo que porra é essa.– O rapaz examinou as marcas pretas em seu braço por um tempo até sentir uma forte dor de cabeça que o fez deitar na cama e gemer de dor enquanto vinha em sua mente diversas imagens de Antony morto. E a forma como ele matou Antony.
A dor sumiu. De repente. Assim como chegou de repente.
E ele sorriu.
Não era tão ruim ter matado alguém.
Ou era?



A Clave: A Luz Que Reina Sobre TrevasOnde histórias criam vida. Descubra agora