7. Febre do Inverno

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Quando o outono acabou e as neves do inverno vieram, elas trouxeram consigo incontestável beleza. Os elaborados telhados dos edifícios palacianos se cobriram com um véu esbranquiçado e cristais de gelo se formaram nos galhos das árvores desnudas. O sol se levantava logo atrás do prédio principal e estendia sua luz por todos os edifícios adjacentes, fazendo o mundo todo brilhar. Haviam belas pinturas que retratavam a capital justamente nessa época do ano e Lana amava cada uma delas, pois faziam com que ela se lembrasse de seu lar. Crescer perto das montanhas significava ter o frio e a neve como amigos constantes e, muito embora os dois reinos fossem muito distintos, o inverno parecia irmaná-los.

Apesar de deslumbrante, o inverno tinha uma face cruel. Sua vinda geralmente significava tristeza e doença para os sulistas pouco habituados a sua presença, e toda a vida parecia se retrair quando ele chegava. A febre do inverno começou a se espalhar como uma praga pelo palácio e muitos servos padeceram. Os nobres estavam um pouco menos suscetíveis a ela, pois contavam com muitas formas de se aquecer, mas a friagem intensa era tudo que restava para as classes inferiores. Como era raramente era dada alguma lenha para que os criados aquecessem seus alojamentos, a maioria acabava adoecendo e sendo consumida pelos tremores.

Naquele ano, Lana e Linete não adoeceram. Elas atribuíram esse fato aos amuletos consagrados à Deusa que usavam sob suas vestes, pois a Lua jamais abandonava os seus fiéis. Por estarem saudáveis, foi lhes atribuído o trato dos doentes e boa parte das funções daqueles que convalesciam. Embora houvesse um médico na corte, a maioria dos servos evitava procurá-lo, pois sabiam que ele se dedicava principalmente aos mais nobres. Por causa disso, Lana tentava levar o máximo de conforto possível aos doentes, fosse lhes servindo chás medicinais ou afofando os travesseiros. Para alguns deles, porém, não havia nada que pudesse ser feito. A febre consumia o corpo e obstruía as vias aéreas, tornando-os incapazes de respirar ou comer. Alguns inchavam horrivelmente, outros ficavam cobertos de feridas purulentas e malcheirosas. Muitos não podiam sequer ser tocados e todos que os assistiam precisavam usar máscaras feitas de tecido, para evitar a contaminação.

Lana estava padecendo sobre uma incomum dose de trabalho. A Matrona Qin também estava de cama, então era sua tarefa manter tudo no lugar, já que ela não podia. As criadas começaram a cochichar entre si e um terrível boato surgiu, afirmando que Lana deixaria a matrona morrer apenas para assumir o lugar dela. Diante disso, Lana redobrou o cuidado. Trocava as roupas de cama sempre que era necessário e entregava-lhe boas refeições. O quarto era mantido sempre aquecido e ela não deixou de cumprir nenhuma ordem ou de oferecer os relatórios. Às vezes, ia visitar a matrona apenas para distraí-la, e até mesmo conseguiu um conjunto de dominó para jogarem juntas. Contou a ela belas histórias mitológicas e adormeceu ao lado de sua cama todos os dias. Com o tempo, ficou visível em seu rosto o quanto aquilo a consumia e quanto carinho estava sendo investido na recuperação da superiora. Algumas servas se aperceberam disso e passaram a defendê-la do assédio das demais, mas no fim das contas, tudo foi em vão. A doença apenas evoluía a passos largos e ninguém mais tinha esperanças que a Matrona Qin se recuperasse. Um dia, ela fechou os olhos para não mais abrir. Apesar do desespero inicial, Lana descobriu depois que ela não estava morta, apenas dormia profundamente. Ninguém, entretanto, parecia saber, ou pelo menos esperar, que ela acordasse do coma. 

Exceto Lana, é claro.

Antes da Matrona Qin cair de cama, ela e Lana nunca tinham sido particularmente próximas. Na verdade, a relação das duas estava circunscrita em um âmbito profissional onde não havia nenhum outro contato além do cumprimento dos deveres. Embora muitas criadas a bajulassem em troca de favores, apenas Lana tinha se disposto a ficar com ela em seu momento de necessidade. Isso, de alguma forma, acabou aproximando as duas e Lana criou uma simpatia verdadeira pela mulher. Matrona Qin tinha uma mente aguçada e alertara Lana sobre cada dificuldade que ela enfrentaria antes mesmo que elas se revelassem. Era muito rígida, mas tinha um humor ácido. Havia servido na corte durante toda a sua vida, e em seus momentos de delírio sempre chamava pela família que perdida. O marido havia morrido há mais de vinte anos e a filha, pouco interessada nos assuntos palacianos, se mudara para longe. Tudo que restava a Qin era o seu trabalho. O tempo havia alçado-a à posição de Matrona, que era o que naturalmente acontecia com as servas quando elas envelheciam em seu cargo. Lana via nela uma alma terrivelmente solitária e, de alguma forma, se identificava com isso. Em sua vida passada ela também havia conhecido a dor da distância e o peso que os deveres assumiam quando eles eram tudo que restava. 

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