3. A Viagem

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O Norte era uma região ancestral, com costumes e construções que datavam de milhares de anos. "Norte" por si só é um termo genérico para se referir a porção de terra que abriga todos os povos da parte mais setentrional do mundo conhecido, designando os diversos reinos que se erguem entre as altas montanhas no fim do continente. Até pelo menos três mil anos atrás, esses reinos não eram tão unidos, mas o tempo e a necessidade acabaram transformando os domínios em cidades e os reis em administradores subjugados a um poder central, mas ainda monárquico. Tal poder é exercido pela Casa Altharian há gerações, uma dinastia sólida e respeitável que sempre contou com o apoio incondicional da população.

Davesh era a capital do poder real e a sede de todos os tipos de liderança desde de sua construção. Erguida antes mesmo da formação dos primeiros reinados nortenhos, foi elaborada para ser um lugar sagrado e ostensivo. Todas as estradas do Norte levavam à Davesh e ela sempre foi lar dos sacerdotes e dos homens da lei. Quando anoitece, todos os edifícios da cidade se iluminam com o luar e a pedra clara de sua construção os faz cintilar como joias, formando uma visão difícil de esquecer. Tal aspecto é tido como profundamente favorável pela crença antiga, que é adoradora da Lua e de suas fases. Por causa disso, Davesh também é chamada de Rum-Naserath, a Cidade da Noite.

Lana cresceu acreditando que não havia nenhum outro lugar mais belo ou tão grandioso quanto Davesh. Em sua primeira vida, ela mudou rapidamente de ideia quando contemplou a capital do Império, mas o renascimento fez com que ela reconsiderasse seus próprios pontos de vista. Enquanto atravessava a estrada de altitude e dava uma última olhada na cidade que era seu berço, ela só conseguia sentir que nenhum lugar no mundo podia se sobressair ao seu lar. A capital do Império era um centro de desigualdade, mas Davesh fazia com que qualquer um pudesse se sentir como parte de algo. Lana conhecia cada detalhe da cidade como conhecia os traços de seus dedos e, para ela, olhar para o rosto pintando de branco dos sacerdotes era como olhar para seu próprio rosto. Desse modo, mesmo que Rum-Naserath tivesse um terço do tamanho da capital imperial, ela parecia ser infinitamente mais acolhedora.

Acolhedora não era o oposto de fortificada. Erigida entre as montanhas de Inah e Seradah, Davesh se utilizava da posição dos próprios montes para se proteger. Seus muros tocavam as laterais de ambas as montanhas e formavam com elas uma espécie de parede semi-natural e intransponível. O único modo de acessar a cidade era através das estranhas estradas que serpentavam ao longo e no interior das elevações, sabiamente construídas para evitar ao máximo a moléstia dos inimigos e para serem defendidas de maneira rápida por pequenos contingentes. Era impossível atravessá-las sem um guia capacitado, pois era muito fácil se perder indefinidamente ou quebrar as patas dos cavalos. Ficar isolado em um lugar como aquele não seria menos do que terrível: haviam muitos terrores além das serpentes que se escondiam no gelo e dos tigres da neve. Por causa disso, vários clãs se especializavam em fazer a travessia e tiravam do acompanhamento dos viajantes sua principal fonte de renda.

Apesar de estar sendo acompanhada por um sujeito eficiente, Lana não podia evitar de se sentir cada vez menos sortuda. Era como se sua vida pudesse terminar a qualquer momento, mas ela não sabia dizer se isso era fruto de um pressentimento maior ou do aborrecimento da travessia. Na primeira vez que a fizera, Lana estava acompanhada de uma comitiva e pouco repara dos perigos do caminho. Agora, montada em um burrinho oscilante, era como se cada passo fosse ser o seu último. Cruzavam um caminho estreito e grudado na lateral da montanha. Só uma pessoa podia prosseguir nele de cada vez e era possível ver o despenhadeiro lá embaixo. Os aquecedores portáteis nada podiam fazer contra o frio terrível e Lana sentia seu corpo todo doer. Não se lembrava a última vez que tivera uma boa noite de sono ou comera um alimento quente. Acender fogueiras significava atrair predadores, então tudo que restava era a friagem e a desilusão.

Linete havia cantado e contado histórias ao longo dos dois primeiros dias de viagem, mas no terceiro dia até ela parecia cansada demais para isso. Quando finalmente desmontaram e se abrigaram numa caverna durante a noite, ela foi a primeira a adormecer. Lana, entretanto, estava inquieta demais para pegar no sono. Deixou o abrigo e caiu de joelhos sobre o luar, fazendo uma prece. A crença antiga pregava que a deusa não podia ser adorada em uma construção erigida pelo homem e todos os ritos costumava ser feitos ao ar livre pelos adeptos. Assim, rezar ao relento não era novidade para nenhum nortenho, mas os pedidos de Lana eram inteiramente novos para ela. Embora ela sempre pedisse força para executar sua vingança, havia também um agradecimento contínuo pela nova vida. Às vezes, a lua parecia brilhar mais forte e Lana entendia que sua Deusa estava respondendo-a. Os sinais, entretanto, não eram suficientes para arrancar do peito da jovem a sensação de pesar e desamparo. Então, ela rezava mais, clamando por iluminação, mas só conseguia apenas se sentir ainda mais desamparada. Apesar disso, não parecia que a Deusa a tinha abandonando. Sua própria vida era por si só uma prova da dádiva divina.

A cada dia ficava mais difícil continuar e Lana podia afirmar com toda certeza que nunca antes havia precisado enfrentar tamanha provação em forma de viagem. Depois de dez dias atravessando caminhos sinuosos e estéreis, foi um alívio chegar ao porto e zarpar em uma embarcação. A viagem não se tornou muito melhor, apesar disso. O movimento do navio provocava nela um enjoo terrível e as tempestades de outono os apanharam em pleno mar mais de uma vez. Parecia impossível se sentir confortável em qualquer parte daquela jornada, mas Lana sabia que todo o sofrimento compensaria. Algum dia, ela colocaria suas duas mãos ao redor do pescoço do Príncipe Herdeiro e assistira com enorme alegria a vida se esvaindo de seus olhos. Rememorar seu próprio ódio era a única fonte de vitalidade que ela possuía, pelo menos por enquanto, então grande parte de seus pensamentos estavam direcionados às suas próximas ações. Apesar disso, tudo parecia muito onírico até então. Ela só sentiu o peso das próprias ambições quando botou os olhos na Cidade Imperial pela primeira vez.

Ronan era exatamente como ela se lembrava: um mar de gente e de cores que fluíam freneticamente por vielas apertadas. Tudo era intenso demais e novo demais, como um produto criado para ser cobiçado, mas consumido na hora. Prédios com os mais diversos formatos e cores se empinavam ao longo das ruas pavimentadas, confluindo numa reta para o Palácio Real, posicionado no centro da cidade. A construção era gloriosa, mas ocupava uma porção monstruosa de espaço. Ao invés de ser um único castelo fortificado, como acontecia no Norte, o Palácio Real era um composto de muitos edifícios baixos e largos, cada um arquitetado para servir a um propósito diferente. Os telhados elaborados eram formados por pequenas telhas, lembrando, de certa forma, as escamas de um grande réptil. Torres e pavilhões requintados se estendiam por todo lado, com beirais que pareciam grandes aves se projetando para bicar os transeuntes. Era difícil controlar os ânimos diante de tal extravagância, pois os olhos não podiam deixar de se impressionar com aquele que era tido como o lugar mais majestoso do mundo conhecido.

Apesar de querer entrar imediatamente no Palácio Real, Lana precisou conter a ansiedade. Chegar em Ronan era apenas um terço de sua tarefa e ela precisava terminar a parte restante. Para isso, seu primeiro dever era se encontrar com o facilitador. Com a ajuda de um mapa, ela e Linete singraram pelas ruas apinhadas até uma grande casa de chá localizada na área nobre. Ao invés de entrarem pela porta da frente, se dirigiram até o beco dos fundos. Uma porta de madeira maciça a aguardava, meio enterrada entre entulhos e despejos. Lana agarrou a aldrava de ferro e bateu três vezes. Um pequeno pedaço de madeira deslizou para o lado na parte superior e um par de olhos selvagens a encarou de uma recém surgida fresta.

— O que você quer aqui? — perguntou uma voz masculina e grave.

Vresh ai-solari epos Rum-Naserath. — Lana respondeu rapidamente. O sol sempre nasce primeiro na Cidade da Noite.

— Ikkoos manterios Lunari somai. — a voz respondeu. Pois a Lua é a Mãe do Mundo.

As dobradiças enferrujadas rangeram sonoramente quando a porta se abriu. Lana saudou o guarda musculoso com um aceno de cabeça e desceu as escadas, receosa. Tinha a terrível consciência que falara vshikka, o idioma do Norte, pela última vez. Tudo que diria e ouviria a partir daquele ponto estaria no Idioma Comum, adotado pelo Império. Parecia que sua missão tinha finalmente começado.



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