AS BRUXAS NO PENHASCO

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A mansão vitoriana verde-escura com beirais dourados e persianas pretas se empoleirava de forma precaria sobre os penhascos rochosos. O telhado, em forma de chapéu de bruxa, estava obscurecido pela névoa e rodeado por corvos grasnindo.

- A Fada das Trevas vai se juntar a nós? -- perguntou Úrsula, enquanto as quatro bruxas seguiam caminho para a casa das irmas esquisitas.

- Não! Não! Água e fogo não se misturam! - disse Lucinda, ao mesmo tempo que Úrsula dava risada. Úrsula se perguntava por que as bruxas irmãs temiam tanto uma convergència entre ela e a Fada das Trevas.

- Não temos medo de nada, Úrsula, mas vemos e ouvimos tudo - disse Lucinda, casualmente lançando um olhar de soslaio enquanto subiam a escada torta, que rangia a cada passo.

Úrsula refletiu sobre os muitos locais onde tinha encontrado a casa, nas ocasiões em que a visitou. Perguntou-se se a construção ganhava pés de galinha e se movia por conta própria ou se as irmas apenas a faziam aparecer onde bem entendessem. Com certeza a casa mudava de lugar por meios mágicos, mas ela adorava imaginar a casa com telhado de chapéu de bruxa se movendo sobre pés de galinha gigantes, com as irmãs viajando dentro dela e gargalhando o caminho inteiro. O pensamento a fez rir enquanto entravam na casinha para a qual ela, tantas vezes, havia sido convidada. A localização podia ter mudado muitas vezes, mas a casa permanecia a mesma, com sua cozinha pequena e singular.

O sol brilhava através de uma grande janela redonda na parede principal, que dava vista para a antiga macieira da rainha e para as ondas que quebravam nas rochas. As prateleiras eram cheias de belas xícaras de chá com estampas diferentes, como se reunidas a partir de vários conjuntos distintos. Úrsula não ficaria surpresa se as irmās simplesmente enfiassem as xícaras de que gostavam na bolsa, discretamente. Será que cada uma tinha uma história própria? A história de seu proprietário e do encontro com as temidas três irmãs.

Qual daquelas xícaras, Úrsula se perguntava, pertencera à velha rainha, ou ás horrendas irmãs Anastácia e Drizella? E qual pertencera à Malévola?

Logo ao lado da cozinha ficava o cômodo principal com uma grande lareira. A cornija era imponente e ladeada por dois corvos enormes que fitavam o nada com um olhar de aço. A sala tinha uma luz estranha e misteriosa, colorida pelos vitrais da janela, onde se viam as várias aventuras das bruxas. Uma das janelas tinha uma simples maçã vermelha. Era solitária e triste, pensou Ursula, mas talvez fosse porque tinha ouvido as irmãs contarem a história da velha rainha, muitos anos atrás.

Quantas histórias tinha ouvido sentada perto daquela lareira quando se dignava a tomar a forma humana? Dessa forma humana - dessa criatura, pensou ela -, não gostava de jeito nenhum. Sentia-se pequena e fraca quando se escondia naquela casca humana. A voz também soava diferente, não era tão estrondosa ou imponente. Não havia poder nela.

   Não havia majestade.

Ela não conseguia entender como os humanos haviam sobrevivido durante tanto tempo naqueles sacos fracos de carne, sempre com dor, sempre andando ou sentados em cadeiras duras. Era horrível esse absurdo humano. Pelo menos tinha Lucinda, Ruby, Martha e sua gata charmosa, Pflanze, para distraí-la das dores de ser humana. Pflanze, a gata tricolor das irmãs, lentamente piscou os olhos dourados de contornos pretos para cumprimentar as bruxas.

   - Olá, Pflanze – disse Úrsula, sorrindo. A gata mexeu as patinhas e piscou de novo, dando boas - vindas à Úrsula em sua casa. Pflanze conseguia enxergar além da forma humana da bruxa do mar e percebia a criatura que ela era na realidade. E achava que a criatura era ainda mais bonita do que a forma que ela havia assumido para que pudesse caminhar entre os humanos.

   Ah, era bonito o suficiente, seu disfarce humano. De grandes olhos escuros e cabelos castanho-escuros fartos, que emolduravam seu rosto em forma de
coração. Qualquer um a acharia bonita, mas Pflanze amava a verdadeira aparência da bruxa do mar, e era fácil ver que a bruxa também a preferia.

   Pflanze observava suas bruxas atarefadas na cozinha preparando o chá para Úrsula, que estava com os pés apoiados em um banquinho almofadado trazido a ela por Ruby. As bruxas de Pflanze estavam muito diferentes desde que sua irmã Circe partira, e Pflanze sentia-se cada vez mais preocupada que elas acabassem definhando de tanta preocupação. Porém, o que mais a perturbava era como as irmãs tinham se tornado silenciosas. Ela estava acostumada às divagações insanas e à tagarelice compulsiva. Só que agora o silêncio na casa era quase insuportável sem a irmã Circe para ser bajulada. Agora, as irmãs apenas ficavam sentadas se lamentando, sem inspiração até mesmo para provocar seu alvoroço habitual. E, quando falavam, era com tanta coerência
quanto possível, numa tentativa de deixar a irmã Circe feliz quando ela, enfim, voltasse para casa. Se as irmãs tinham coração dentro de suas cascas ocas e cheias de ódio, Pflanze presumia que ele tinha se partido no dia em que a irmã caçula fora embora com ódio nos olhos, raiva nas palavras e uma profunda tristeza no coração.

   Circe não era como as irmãs, ponderava Pflanze. Ela amava. E Circe sentia
que Lucinda, Ruby e Martha finalmente tinham ido longe demais com a magia,
por terem feito sofrer alguém por quem Circe um dia tivera imenso carinho.
Pflanze não culpava as irmãs pelo que haviam feito ao príncipe, a maldição
que tinham ajudado a lançar sobre ele, nem pelas tormentas que haviam
chovido sobre a cabeça dele. As irmãs quase o tinham deixado louco, e com
razão. Ele havia partido o coração de Circe e a tratado muito mal.

   Tudo o que fizeram, toda a intromissão e as maquinações, foram por sua irmã mais nova. No entanto, Circe ficou terrivelmente zangada pela participação que elas tiveram no feitiço, que tinha feito o príncipe se afundar ainda mais em seus modos gananciosos e nocivos, quase destruindo reinos nesse processo.

   Não, Circe não podia perdoar as irmãs, e Pflanze tinha quase certeza de que ela nunca mais falaria com elas, como uma forma de punição. A bela felina esperava que a visita de Úrsula inspirasse um pouquinho de maldade e tirasse suas senhoras da depressão profunda de que vinham sofrendo.

   Mas as reflexões de Pflanze foram destruídas por gritos que fizeram Martha derrubar o bule de vidro, partindo-o em caquinhos no chão quadriculado preto e branco da cozinha. Ruby estava chorando. O vidro reluzia como diamantes, era deslumbrante aos olhos de Úrsula. Logo o choro de Ruby era tão forte que ela se viu nos braços da bruxa do mar, quando esta tentou acalmá-la do seu frenesi teatral.

   – Pflanze acha que Circe nunca mais vai falar com a gente de novo! – Todas as irmãs estavam gritando e chorando, retorcendo as mãos e rasgando os vestidos. Martha começou a puxar os cabelos, e Lucinda estava arrancando as penas dos seus e jogando-as pelo cômodo como uma louca.

   – Meninas, parem! – ribombou a voz de Úrsula, e as irmãs viram, por trás do corpo humano elegante no qual ela se escondia, a sombra da sua verdadeira forma dominando a cozinha. – Silêncio! – ordenou ela.

   As irmãs fizeram silêncio.

   – Vocês verão sua irmã novamente, eu prometo, mas, antes disso, há uma coisa que vou precisar de vocês.

Úrsula - A história da bruxa da pequena sereiaOnde histórias criam vida. Descubra agora