A BONEQUINHA DO MAR

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   Escondida na mansão, Pflanze e suas bruxas se preparavam para a história de Úrsula. As irmãs colocaram Úrsula no lugar mais confortável, ao lado da lareira, numa linda poltrona de veludo cor de lavanda, com muitas almofadas vermelhas de retalhos empilhadas, para que pudesse descansar sobre elas os pés fatigados. Úrsula não estava acostumada a andar sobre duas pernas em terra firme, por isso era muito cansativo.

   Ao lado da poltrona estava uma mesinha redonda com um conjunto de xícaras de chá com estampas de rosas. O vapor girava e se curvava para fora da xícara como se formasse tentáculos fininhos. Não fossem os eventos infelizes que tinham acometido tanto as irmãs quanto sua querida amiga, aquela teria sido apenas mais uma das inúmeras visitas agradáveis durante as quais elas normalmente fofocavam sobre os acontecimentos nos vários reinos ou trocavam histórias de seus feitos perversos. Não havia nada como trocar histórias com outras bruxas, ainda mais com uma bruxa como Úrsula.

   Ela era uma bruxa de verdade, com um passado real e grande poder, mas mais importante: tinha senso de humor. Não havia nada que não achasse divertido, mesmo a respeito de si mesma. Era a bruxa mais descarada que elas conheciam, e provavelmente era por isso que a irmãzinha Circe gostava tanto dela.

   Ah, Circe.

   Sua irmãzinha querida. Será que nunca mais a veriam? Será que ela estava perdida para sempre?

   – E se algo terrível aconteceu com ela? – exclamou Ruby.

   – Você tem que parar com toda essa preocupação obsessiva com a Circe, de uma vez por todas, Ruby, por favor!

   – Sim, acalme-se. Úrsula agora vai contar a história dela.

   A voz da bruxa do mar era calma e inexpressiva. Não havia nenhum indício de seu estilo histriônico habitual. Sua voz não ribombava. Era quase pequena, e ela parecia mais séria do que nunca aos olhos das irmãs.

   – Meu pai me encontrou flutuando sobre as ondas, agarrada a um pedaço de madeira lascada, o que ele presumiu que era parte dos destroços de um naufrágio terrível. Ele me resgatou do mar e me trouxe para seu vilarejo, e foi lá que eu morei.

   Com meu pai.

   Ele me chamava de sua bonequinha do mar e me criou como filha. Era isso o que eu era: sua filha. Eu me despedia dele com um aceno todas as manhãs quando ele partia no barco de pesca e rezava aos deuses do mar para que o trouxessem de volta para mim em segurança, o que sempre faziam. Ele era a única pessoa no mundo que realmente me amava. Ele agradecia aos deuses do mar diariamente por terem me trazido para sua vida solitária, e eu os agradecia por terem-no trazido para a minha. Nenhum de nós podia saber da coisa que estava crescendo dentro de mim, o poder que eu tinha, ou a forma que eu, por fim, iria tomar. Se ao menos eu tivesse confiado nele e em seu amor quando comecei a temer a coisa na qual eu estava me transformando...

   As irmãs ouviam atentamente. À espera. À espera de ira e de fúria. Mas Úrsula havia se calado, ao que parecia, perdida nos próprios pensamentos. Memórias, sem dúvida, de seu pai. As bruxas nunca tinham visto Úrsula tão pensativa.

   Martha quebrou o silêncio.

   – Ele traiu você? Os homens sempre traem, não é? Os pais nunca amam as filhas como deveriam!

   Úrsula disparou um olhar gélido para Martha, mas não respondeu.

   – Ele sentiu repulsa pela sua forma aquática? Medo do seu poder?

   – Ah, eu aposto que ele tentou matar você! Os pais são sempre uma
decepção!

   – Ah, nós podemos ajudar com pais odiosos!
 
  – Podemos invocar a velha rainha, se você não acredita em nós!

Úrsula - A história da bruxa da pequena sereiaOnde histórias criam vida. Descubra agora