O DESESPERO DE CIRCE

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No fundo do oceano, escondida no jardim das almas perdidas de Úrsula, Circe sentiu-se cada vez mais brilhante e reluzente, como as luzes douradas fulgurantes que a rodeavam. Era uma sensação curiosa, como se ela nunca tivesse conhecido o que era estar viva até aquele momento. Úrsula tinha tomado sua alma e deixado a casca vazia para murchar como as outras vítimas no jardim.

Circe nunca tinha imaginado como seria isso, como seria perder a alma, e não poderia imaginar aquela sensação profunda e penetrante de vazio, como se não restasse nada a não ser tristeza e solidão.

Contudo, nem mesmo isso explicava adequadamente qual tinha sido a sensação.

Ela imaginava que era semelhante a uma angústia poderosa, um terrível vazio e sentimento de desespero e desamparo, como se ela estivesse sendo engolida por um buraco escuro e profundo do qual não conseguia se arrastar para fora.

Será que foi assim que a Fera se sentiu quando a maldição tirou sua humanidade? Um calor subiu por suas bochechas ao mesmo tempo que a vergonha tomava conta dela. Claro, suas irmãs diriam que ele é que havia provocado aquilo a si mesmo. Que ela havia lhe dado uma escolha. E era verdade. Mas seu coração doía de pensar que, um dia, havia conseguido provocar tanta dor ao próximo, mesmo que ele tivesse merecido.

Enquanto ela e as outras vítimas subiam do jardim de Úrsula, livres, ela viu os restos horríveis de sua captora espalhados no fundo do oceano e soube que suas irmãs deveriam estar nas proximidades. Nadou com uma cauda de sereia e se encolheu quando viu grandes porções dos tentáculos decepados de Úrsula, sentindo uma intensa culpa pelo papel que teve em sua morte.

Não entendia por que Úrsula a havia traído e, embora já não estivesse mais presa dentro do jardim das almas perdidas, o sentimento vazio e terrível permanecia dentro de si. Ela só queria saber por quê. Sempre tinha gostado de Úrsula. Sempre tinha sido sua amiga. Nunca saberia por que ela a havia
traído...

Ou saberia?

Lá, reluzindo no fundo do oceano maculado e turvo, entre os restos da bruxa
do mar, estava o colar de concha dourada. Circe o apanhou em sua mãozinha e fez um desejo desesperado.

Foi imediatamente acometida por uma raiva que nunca tinha experimentado antes. O peso era impossível de conter, Circe sentia como se fosse consumi-la. Não, aquilo não estava certo; parecia que algo estava crescendo dentro dela, algo grande e vil demais para que ela o contivesse. Sentia como se fosse explodir e não sobraria nada a não ser ódio.

Era insuportável aquela dor. Aquela angústia. Mas o ódio e a raiva – esses eram o pior de tudo. Eram como uma doença terrível que envelopava seu coração, distorcendo sua mente e a preenchendo com imagens horríveis. A cabeça de Circe foi ocupada por imagens que ela não entendia. Cenas terríveis e medonhas de um homem sendo abatido, literalmente retalhado em pedaços por uma multidão enfurecida, e tentando manter a turba longe de uma jovem. E imagens da mesma garota sobre um penhasco, chorando, seu coração cheio de medo e ódio. As imagens ficavam se alterando de uma para a outra em rápida sucessão. Circe não sabia o que significavam, mas sentia as memórias como se fossem suas, porque estava sentindo algo inteiramente novo, completamente diferente... alienígena.

Naquele momento, ela havia passado a possuir a psique da bruxa do mar.

"Ela era Úrsula."

Era um leviatã, e seu corpo inchava não apenas de raiva, mas de poder e tamanho. Tinha o poder de comandar o mar e o faria a seu bel-prazer. Aquele poder era demais para qualquer bruxa suportar, mesmo Úrsula, e isso assustava Circe. Ela lutava não apenas contra si mesma, mas contra um enorme ódio dirigido a ela. Não podia compreender quem tinha o poder de dirigir tamanho ódio. Quem tinha o poder de usar sua própria magia contra ela? Sua mente girava no turbilhão de ódio que a penetrava. Tinha crescido em proporções imensuráveis e sentia-se impenetrável. Seu ódio a havia traído.

Circe enxergava dentro do coração da bruxa do mar. Ela era asquerosa. Ela era feia. Ela era monstruosa e repugnante. Ela era tudo o que seu irmão lhe dissera e tudo o que a Fada das Trevas previra. E a bruxa do mar ficou sabendo que merecia aquele fim. Ficou sabendo no momento que antecedeu sua morte. Havia traído as irmãs esquisitas, suas queridas amigas, por esse... por esse poder e por vingança. Um poder que a estava destruindo. Um poder que ela não podia controlar. Não tinha controle próprio. O ódio fervente tinha tomado posse dela. Era a própria criatura do ódio, e não tinha vontade bastante para comandá-lo.

Ela já estava morta antes que Eric lhe tirasse a vida.

Circe soltou um grito pavoroso, tão alto e tão terrível que ela pensou que a força acabaria rasgando sua garganta.

Era ela mesma novamente, mas diminuída, não só por sua provação, mas por ver o coração de Úrsula em seus momentos finais.

Quando chegou à superfície, enxergou a fumaça roxa e preta esvoaçante subindo do oceano como uma nuvem ameaçadora de ruína, enchendo o céu e escurecendo os navios que estavam ancorados perto do castelo Morningstar. Os restos mortais de Úrsula tinham flutuado até a superfície e se misturado com a espuma do mar, deixando-a num tom preto-acinzentado pútrido. Seu ódio parecia permanecer mesmo depois de sua morte.

Não obstante, o Farol dos Deuses projetava seu brilho deslumbrante, recusando-se a ser diminuído pela fumaça da decadência. Quando Circe saiu das ondas e pisou em terra, foi reconfortante usar os pés novamente e sentir a areia debaixo deles. Ela sentia que suas irmãs estavam perto e correu para o castelo em pânico, porque sabia que havia algo terrivelmente errado.

Não se preocupou com os guardas no portão e simplesmente desejou que a deixassem passar. O senhor Hudson a cumprimentou na porta com um olhar de pânico. Ele estava pálido, e seus olhos se mostravam cheios de terror.

– Senhorita Circe, graças aos deuses a senhorita está aqui! Há algo de terrivelmente errado com a princesa Tulipa, e a babá foi atacada! – Circe tentou clarear a cabeça, que ainda estava confusa desde a sua transformação de sereia em bruxa.

– Onde elas estão? Leve-me até elas.

O senhor Hudson a conduziu para o salão principal, onde vários guardas estavam tentando entrar usando machados, mas só estavam conseguindo quebrar as armas, que agora estavam amontoadas numa pilha no chão.

– Afastem-se, cavalheiros. – Circe lançou a mão para a frente e explodiu a porta, produzindo um ruído violento e espalhando estilhaços.

A babá e as irmãs estavam deitadas no chão, inconscientes.

– Onde está Tulipa? – perguntou, olhando ao redor da sala.

– No quarto dela, senhorita. Rose está tentando acordá-la há horas.

Circe não conseguia entender o que havia acontecido.

– Preciso que todos saiam desta sala.

O senhor Hudson tentou protestar, mas Circe o silenciou com uma severidade incomum.

– Hudson, agora! Mande todos saírem desta sala para que eu possa cuidar da babá e das minhas irmãs.

Úrsula - A história da bruxa da pequena sereiaOnde histórias criam vida. Descubra agora