O COVIL DA BRUXA

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Depois de apenas alguns dias – muito antes do que esperava –, Úrsula ouviu uma agitação à entrada de seu covil, formada pela boca escancarada do esqueleto que um dia pertencera a uma criatura do mar. Ela se virou para ver Ariel seguindo de perto Pedro e Juca, um pouco além dos dentes afiados da entrada.

Úrsula riu da beldade de olhos arregalados que vinha tremendo na escuridão, com seu cabelo vermelho flutuando ao redor, à maneira de Ofélia. Adequado demais, pensou Úrsula, com uma nova risada. Tinha que admitir: essa filha de Tritão era uma criaturinha adorável, com grandes olhos azuis e belas feições. Era notável como se parecia com a mãe, e Úrsula quase ficou triste por armar contra alguém cuja imagem era idêntica à da única pessoa no reino de Tritão que a tinha tratado com um ínfimo traço de gentileza e respeito.

– Por aqui – sibilaram Pedro e Juca, e Ariel estremeceu.

A pobrezinha estava atravessando com dificuldades o jardim de almas perdidas. Se tivesse ao menos um pingo de juízo, teria escapado naquele momento, mas, para a sorte de Úrsula, a mente das jovenzinhas que tinham a rebeldia no coração era alvo fácil para gente como a bruxa do mar. Tritão tinha provocado a própria ruína quando afastou a filha, ao destruir sua coleção de bugigangas humanas e condená-la por amar um humano. Bem, a tia Úrsula ficaria com dó da pobre garota. Ela a abraçaria junto ao peito e lhe daria uma chance de apanhar o belo príncipe por quem Ariel tinha se apaixonado e largar o pai tirânico para trás... sozinho, para ser usurpado por Úrsula, que então ganharia seu lugar de direito como rainha.

– Entre. Entre, menina. Não deve espiar atrás da porta. É feio! Vão duvidar da sua boa educação!

Úrsula riu enquanto nadava para a penteadeira, retocava a maquiagem e adicionava um pouco de talento e drama à conversa.

– Agora diga, veio aqui porque sente uma queda por aquele humano, o príncipe, não é? Eu não a censuro. Ele é uma graça, não é? – Úrsula riu. Ariel só ouvia, paralisada pela bruxa do mar.

– Bem, menina-sereia, a solução do seu problema é simples.

Pegando uma página do livro de beleza das irmãs esquisitas, ela passou uma camada brilhante de batom vermelho. Apertou os lábios e fez um formato de beijo com eles para espalhar o batom. Em seguida, concluiu o pensamento:

– O jeito para conseguir o que quer é você se tornar humana também.

– Pode fazer isso? – perguntou a sereia assustada.

– Minha querida e bela menina, é isso que eu faço! É para isso que eu vivo.
Para ajudar os infelizes seres do mar, como você. Pobres almas que não têm a quem recorrer...

Úrsula adorava esse tipo de coisa. O espetáculo. Era divino, na verdade. Considerava a melhor forma de chamar a atenção de suas vítimas, encantá-las com um espetáculo ao qual elas não podiam resistir, e ela adorava a oportunidade de um pouco de atrevimento!

– Eu confesso que já fui muito malvada, era pouco me chamarem só de bruxa! Mas depois, arrependida, fiquei mais comedida e até mais generosa e gorducha, pode crer! Felizmente, eu conheço uma magia. É um talento que eu sempre possuí. E hoje é este o meu ofício, eu o uso em benefício do infeliz ou sofredor que vem aqui.

Mal tolerando as próprias palavras, ela sussurrou para as enguias:

– Patético!

Corações infelizes precisam de mim! Uma quer ser mais magrinha, outro
quer a namorada. Eu resolvo? Claro que sim!

São corações infelizes, em busca de tudo. Todos eles chegam implorando,
"faça-me um feitiço". E o que é que eu faço? Eu ajudo.

Mas me lembro no começo, alguns não pagaram o preço e fui forçada a castigar os infelizes.

Se reclamam não adianta, pois em geral eu sou uma santa... para os corações infelizes!

Agora vamos aos negócios. Eu farei uma poção que a transformará em humana por três dias. Entendeu? Três dias! Agora ouça, isto é importante! Antes do pôr do sol do terceiro dia, você tem que fazer aquele príncipe se apaixonar por você. Isto é, ele tem que beijar você. Não um beijo qualquer. O Beijo do Verdadeiro Amor! Se ele beijar você antes do pôr do sol do terceiro dia, você ficará humana para sempre, mas, se não beijar, você voltará a ser sereia e... pertencerá a mim!

Ariel parecia aturdida.

– Chegamos a um acordo? – perguntou Úrsula.

– Se eu ficar humana, nunca mais estarei com meu pai ou minhas irmãs.

– Tem razão... Mas terá o seu homem. A vida é cheia de escolhas difíceis,
não é? Oh, e ainda tem mais uma coisa, ainda não falamos do detalhe do pagamento. Não se consegue algo assim de graça.

– Mas eu não tenho nada... – disse Ariel.

Antes que ela pudesse terminar, Úrsula interrompeu:

– Eu não cobro muito. Vai lhe custar uma ninharia! Não vai sentir falta. O
que eu quero de você é... sua voz.

– Minha voz?

– É o que eu disse, queridinha. Não vai mais falar, cantar... fim.

– Mas, sem minha voz, como posso...

– Terá sua aparência, seu belo rosto. E não subestime a importância da
linguagem do corpo. O homem abomina tagarelas. Não vá querer jogar conversa fora. E só as bem quietinhas vão casar!

É hora de resolver o negócio entre nós! Eu sou muito ocupada e não tenho o dia inteiro. O meu preço...? É a sua... voz! Vamos lá, tome coragem, assine o documento!

Ariel fechou os olhos e assinou o pergaminho, encolhendo-se diante do poder de Úrsula. No momento em que o assinou, soube que tinha cometido um erro.

Um erro terrível.

O que foi que eu fiz?

O pergaminho assinado foi parar no punho apertado de Úrsula e rapidamente desapareceu dali por magia. Ariel se perguntava se conseguiria fazer o príncipe se apaixonar por ela e, se conseguisse, será que o pai algum dia a perdoaria? Será que esse rapaz que ela mal conhecia valia o preço de desistir de sua família, de seu lar... de sua voz? Ariel sentia como se estivesse flutuando em um pesadelo naquele lugar horroroso, rodeada por criaturas revoltantes e assustadoras e pela voz intimidante de Úrsula, quando ela disse as palavras mágicas que selariam o acordo:

– Verruga, sifruga, e eu quero um vento assim... Laringula língua, e lara laringe e a voz para mim...

Ariel queria gritar:

– Não! Pare! Eu mudei de ideia! – Mas para onde iria? Para casa, para seu pai, que havia destruído tudo o que ela amara quando varreu da face do mundo seus bens mais valiosos? Seu pai, que havia proibido que ela algum dia visse seu príncipe, Eric? Não, Úrsula estava certa. Não tinha escolha.

O caldeirão da bruxa do mar, o qual ela vinha enchendo com ingredientes medonhos recolhidos dali de perto, agora estava explodindo com uma luz azul que rodopiava ao redor delas como um paredão. O coração de Ariel batia forte, trovejava nos ouvidos, e ela sentiu uma profunda tristeza por trair a família e, pior, por trair a si mesma. Ela sabia que seu pai nunca a perdoaria isso. Ela sabia que ele nunca a amaria novamente.

Úrsula riu.

Ele vai odiar você, como me odeia! Ele odeia todas as coisas diferentes dele, pequena peixe-anjo. A espiral de luz se transformou em mãos que tateavam, gananciosas, pela voz de Ariel.

– Agora, cante! – ordenou Úrsula.

As mãos horrendas tomaram a garganta de Ariel e tiraram dela aquilo que mais a fazia ser quem era: sua voz.

Sua linda, linda voz escapou-lhe dos lábios involuntariamente.

– Continue cantando! – O riso de Úrsula foi ouvido pelos muitos reinos, enquanto o caldeirão lançava uma luz dourada que rodeava Ariel, desfazendo em pedaços seu corpo de sereia e transformando-a em humana.

Uma humana no fundo do mar.

Não importava à Úrsula que a menina não pudesse mais respirar debaixo d'água. Ela vai precisar encontrar um caminho até a superfície. Ou não.

Úrsula - A história da bruxa da pequena sereiaOnde histórias criam vida. Descubra agora