Capítulo 9

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Quando entro na Providence Living at Maitland, sou recebida pela Susana, que caminha ao meu lado pelos corredores.

Felizmente os raios de sol de hoje de manhã fizeram a nevasca derreter e permitem-me vir ver o meu pai.
Mas ainda notei que o chão do estacionamento tinha neve porque foi difícil estacionar.

Olho para as paredes e reparo que foram pintadas, porque estão num tom mais claro e vivo.
A casa de repouso é algo parecido a um castelo, o que faz do meu pai um príncipe privilegiado.

Aqui não deixam atrasar nada. Todos os horários que eles precisam de cumprir, são levados à letra, não há nada que eles não façam a horas. As refeições, os banhos, as medicações e até mesmo as sessões de fisioterapia são feitas no horário certo e mais adequado a cada paciente.

O meu pai não tem grandes hobbies, apenas gosta de comer a horas certas, ver os jogos do Buccaneers e ir ao jardim da Providence.

O que me faz ter um pouco de inveja porque é tratado não só como um príncipe como também não tem muito que fazer.

Mas o meu pai está num quarto e eu dou aulas numa escola, convivo com muitas pessoas durante o meu dia, enquanto que ele fica aqui a ver sempre as mesmas caras, e isso faz o meu quesito de inveja desaparecer. Ele está fechado aqui e eu circulo livremente.

A mulher negra cruza agora o corredor largo e principal, deixando-me reticente enquanto encaro as suas tranças compridas moverem-se durante o caminho.

É a primeira vez que estou nesta parte da Providence e só pode haver um motivo para estarmos aqui.
Suspiro quando a sua expressão triste e empática preenche o meu campo de visão.

– Antes mesmo de chegar, precisámos de transferir o seu pai de quarto. – justifica enquanto cruzamos o corredor.

– O que aconteceu? – questiono, com a voz entrecortada.

– Quando a menina desligou, eu fui organizar as coisas para uma sessão de fisioterapia de outro paciente e o seu pai pediu a uma enfermeira para ver a esposa. Mas, depois de a enfermeira dizer que a esposa dele não estava, ele tornou-se agressivo.

Susana nega com a cabeça, assim como eu, como se não entendesse.
A doença está realmente a afetá-lo e isso faz a preocupação borbulhar nas minhas veias.

– Isso tudo é consequência da doença...

Digo enquanto mantenho no rosto uma expressão desolada.
O pequeno ramo de flores e a caixinha na minha mão, com a fatia do bolo, estão quase a cair. Porém, Susana ajuda antes de entrarem em contacto com o chão. 

– Está a evoluir mais rápido do que podíamos imaginar, menina Reis. – a senhora confessa e eu encaro o chão com lágrimas nos olhos. – O médico vem amanhã para examinar como ele está. Pedimos urgência.

– Certo. – concordo, tentando processar a informação. – Como é que ele está agora?

– Dentro dos possíveis. – revela num tom cauteloso. – Mas não se recorda de ter empurrado e gritado com a enfermeira ou de destruir todo o quarto.

Solto um suspiro, cansada.
É a primeira vez, em quase três anos, que ele faz isto.

Desde que tínhamos descoberto a doença, há 29 meses atrás, que concordámos, os dois, em colocá-lo numa casa de repouso sempre com assistência médica para o caso de algo acontecer.

O que eu não esperava era que a doença demorasse tanto a revelar-se.

No primeiro ano fiquei muito hesitante quanto a ele, a esperar qualquer reação diferente, qualquer conversa estranha ou até mesmo a duvidar de cada passo seu, mas, tudo parecia normal... desde há sete meses para cá.

A primeira coisa que notei foi a alteração no humor, mesmo ele continuando com a euforia e a animação a ver os jogos no ecrã e com a medicação adequada.

As alterações não foram muito significativas, só quem convive com ele sabia que algo não estava bem.

– Posso vê-lo?

Pergunto, a encarar a porta azul ao meu lado.
Susana confirma levemente e retira a chave do bolso, espantando-me enquanto ela destranca a fechadura e me deixa entrar.

Hesitante, coloco um pé dentro do quarto e falho o passo ao ver o meu pai preso à cama com umas fivelas.
Mordo o lábio com a imagem e solto a respiração que não sabia estar a prender assim que o vejo respirar serenamente, denunciando o sono profundo.

– Tivemos de o pender para o conseguirmos trazer. – avisa quando encaro as mãos amarradas. – O sedativo deverá perder o efeito... – ela olha para o relógio no seu pulso. – talvez amanhã de manhã.

Após pousar as coisas na mesa ao meu lado, caminho para perto da cama e aliso o cabelo já grandinho do meu pai, passando por ele os dedos e sentindo o quão suave são os fios quase cinzentos.

Encosto os lábios à sua testa e permito-me a demorar no contacto quando o beijo. Coisa que não faço há uns meses, quando ele teve a sua primeira mudança de humor repentina comigo.

Desde o episódio inesperado naquela manhã, não me atrevi a tocá-lo sem que ele tomasse a iniciativa primeiro. E apenas eu sei o quanto me custa não poder abraçar, tocar ou beijar o meu próprio pai com medo de que ele possa perder a cabeça.

O famoso, e mais que conhecido, aperto no peito começa a formar-se enquanto o olho ternamente, desejando com todas as forças que ele melhore... mesmo sabendo que não há cura.

.

– Já é quase meia-noite, menina Reis.

A mulher negra diz em tom suave enquanto adentra pelo quarto com uma pequena ardósia na sua mão.

Está atenta a escrever qualquer coisa nela, depois de olhar os sinais do meu pai num aparelho que tem alguns fios ligados ao seu braço e avisa-me num tom ternurento que o horário de visitas está a terminar.

Tomo a liberdade de suspirar silenciosamente enquanto limpo a garganta e passo a mão pela minha  bochecha quente, numa tentativa de afastar o cansaço.

Com uma expressão cabisbaixa, levanto-me da cadeira perto da cama e devolvo-a ao seu devido lugar.

Timidamente, encaro a senhora e dou um meio sorriso que ao mesmo tempo agradece todo o esforço e a paciência.

– Quando ele acordar... – começo com a voz entrecortada. – Pode me avisar, por favor?

Ela encara-me com um semblante compreensível. Oh não!
Tudo o que menos preciso agora é do olhar que Susana me lança neste exato momento.

Aquele olhar capaz de derrubar a barreira que ergui assim que aqui entrei, para conter as lágrimas.

Talvez o meu olhar abatido e exausto necessite mesmo de alguma ternura. Passei o resto do dia sentada na cadeira dura do quarto porque não consegui ir embora sabendo que o meu pai tinha tido um ataque de raiva esta tarde.

Isso pode ter decorrido enquanto eu estava presa no trânsito ou, porra!, ele pode ter tido a fúria enquanto eu terminava a minha cerveja na cafetaria com as meninas...
Engulo o desgosto que sobe pela minha garganta ao pensar no meu egoísmo.

Se eu tivesse vindo diretamente para cá, talvez pudesse ter detido as suas mãos incontroláveis de destruir o outro quarto.

Só que... eu não vim. E isto aconteceu.

Com um pequeno aceno, ela confirma o meu pedido e, sem olhar para trás, caminho rapidamente até à entrada, desesperada para sair daqui enquanto o cheiro a desinfetante faz arder as minhas narinas.

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A casa de repouso onde está o pai da nossa Bru está na imagem da midia.

Acham que ela se deveria culpar por chegar "tarde"?? :(

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