TRINTA E TRÊS

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Harry

O playground secreto estava quieto. Nenhum pássaro piando, nenhum esquilo correndo, nenhum espírito passando. Eram 18h50.

Eu andei da lagoa até as escadas, e fiz o caminho de volta. Eu queria guardar na memória cada centímetro daquele lugar - o bosque de cedros, o balanço, a varanda. Onde estaria Niall agora? Eu me perguntava. Sendo sincero, eu daria qualquer coisa para ver meu irmão uma última vez e me despedir.

Admirei o cenário silvestre, memorizando a cor das folhas e os ângulos da luz. Eu sabia que nunca mais voltaria aqui, e logo a clareira desapareceria. A floresta voltaria a cobrir o campo de golfe, e ninguém saberia que esse lugar um dia existiu.

Pensar nisso trouxe lágrimas aos meus olhos. Aquele foi o lugar mais importante do mundo para mim durante anos. Mas eu fiz a minha escolha e, agora, havia um outro local onde eu deveria estar. Inspirei profundamente, inalando o odor pungente do outono, e estava pronto para ir embora quando me assustei ao ver um rapaz jovem andando por sobre a grama. No início, me perguntava quem poderia ter descoberto o playground secreto. Em 13 anos, ninguém havia penetrado no santuário.

O intruso era alto, com os braços fortes. Tinha uma barba rala, cabelo castanho natural e os olhos azuis. 

Perdi o fôlego quando percebi.

Era Niall.

-Oi, irmão - ele disse com um sorriso no rosto.

Eu estava sem palavras. O boné dos Atlantics, seus calções e regata branca haviam sumido. Agora ele vestia uma camisa social listrada e blazer.

-Olha só para você!

-O quê?

-Você é um homem.

-Sim, finalmente sou um homem e - ele fez uma pausa. - Posso fazer o que eu quiser.

Estávamos frente a frente naquele momento, e eu percebi que meu irmão estava transparente como um holograma, com superfícies luminosas. Niall era, agora, um reflexo do passado, e uma projeção do futuro - tudo que ele foi e tudo que sempre quis ser.

Me aproximei mais, receoso, e coloquei os braços ao redor de sua forma evanescente. Fiquei triste por não conseguir tocá-lo. Meu abraço não tocou em nada. Niall não estava mais entre os mundos. Ele estava em outro lugar agora, mas eu ainda conseguia sentir o seu calor e a força da ligação entre nós.

-Você fez a travessia.

-Sim, eu fiz.

-Como são as coisas do outro lado?

-Muito além de tudo que nós imaginávamos. É indescritível. Você vai ver.

-Mas então... como você conseguiu voltar para cá? Eu não sabia que era possível...

-Há muitas coisas que você não entende - disse Niall. - Mas não se preocupe. Era assim que as coisas deveriam ser.

Nós andamos pela floresta e nos sentamos no tronco em frente à lagoa, lugar que guardava boas risadas e memórias.

-Você ficou bravo por eu ter quebrado a promessa?

-Não. Já estava na hora. Nós estávamos muito presos e... deixando a vida passar. Você fez a escolha certa, Harry. Você não só salvou aquela garota, você também nos salvou.

Eu desejei mais do que nunca colocar os braços ao redor dos ombros dele. Abraçá-lo. 

-Era você na água aquele dia, não era? - perguntei. - Você sabe, com os esguichos e o vento.

-Você demorou para perceber, hein?

-O que eu posso fazer? Tristeza em primeiro lugar.

-Tristeza... a palavra que mais te definiu nesses últimos dias. Espero que você faça alguma coisa para mudar isso. Não gosto de te ver triste. -Eu estudei os contornos do meu irmão, que havia crescido tanto e que, ainda sim, continuava a mesma pessoa.

-Eu vou ficar bem.

-Eu sei que vai. E eu vou estar com você, em cada passo do caminho.

-Sabe, eu acho que só me arrependo de uma coisa - eu tentava ser sincero nesse último momento. - Me perdoe por ter me apegado tanto a você e atrasado as coisas. Me perdoe por te prender tanto, você... foi tão importante para mim em tantos momentos. Sem você eu não teria conseguido. Obrigado por não me abandonar, por ficar comigo. Você foi, Niall, e sempre será, o melhor irmão do mundo. O melhor que eu poderia ter e eu serei eternamente grato a você, por tudo, de verdade - eu nem percebi que estava chorando.

-Você não tem que agradecer, Harry, eu tenho. Você ficou comigo, desistiu de tudo por mim. Você me protegeu... cuidou de mim. Sempre.

Aquilo era uma despedida, eu sabia disso. 

-Canta para mim. Uma última vez. Por favor. 

Niall concordou com a cabeça e antes que ele pudesse começar, eu já havia caído desabado.

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-Você acha que algum dia jogaremos golfe de novo? - perguntei, ainda com um aperto no peito.

-Tenho certeza disso. Nos encontraremos de novo em um piscar de olhos. E aí estaremos juntos para sempre.

-Então prometa que você não vai me esquecer.

-Prometo.

-Jura? - eu falei, maravilhado por repetir a conversa que ocorrera a tantos anos. Dessa vez, entretanto, foi Niall que me consolou.

-Eu juro.

-Jura por Deus?

-Juro por Deus. Eu te amo, Harry.

-Te amo também, Niall.

Ele se levantou e caminhou até a borda da lagoa.

-Que tal um último empurrão?

Ainda que relutante, fui até ele devagar, tentando ao máximo prolongar aquele momento. Eu não queria ter que dizer adeus. Eu sabia que precisava, mas não queria. Eu sentiria tanta saudade. 

E mesmo assim eu o empurrei, e Niall começou a balançar de um lado para o outro por sobre a água. Analisei com cuidado cada detalhe seu, tentando guardar aquilo na memória.

-Adeus, irmão.

-Adeus, Niall.

E assim ele se foi, mergulhando em um belo salto mortal para frente. Os braços e pernas desajeitados já não estavam mais ali, e eu me senti abençoado por ter sido capaz de ver meu irmão em todo seu esplendor. 

Então, Niall desapareceu, e a clareira ficou em um absoluto silêncio, exceto pela corda que ainda balançava e por uma revoada de folhas vermelhas de carvalho ao vento.

Eu fiquei ali por mais alguns minutos. Pensando nele. E em tudo que um dia vivemos. E tudo que um dia ainda iríamos viver no outro lado.

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