Jantando com o inimigo

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Bucky
Os faróis do meu carro iluminaram a fachada de casa, o jardim, a garagem, coisas para as quais eu sequer olhava mais, tudo tão familiar, de repente, aquela casa perfeita, em um dos melhores subúrbios de Nova York, pareceu-me o cenário de um novo seriado de TV chamado "Essa vida não é minha". Apaguei os faróis e olhei para a casa por um instante, com apenas perguntas em mente: que diabos, Lizzie serviria no jantar daquela noite? Quando tentou me matar naquela montanha, será que sabia que era eu, o marido dela, quem estava ali? Ou achou que eu não passava de um agente inimigo que se metera no caminho dela? Será que ela sabia sobre mim? Será que sabia que eu sabia sobre ela? Puta merda, como isto era possível, duas pessoas morarem na mesma casa, com tantos segredos importantes, e sequer suspeitarem da verdade? Olhei pela janela da cozinha, nenhum sinal da minha querida esposa, estaria ela planejando um jantar ou um assassinato? Ao mesmo tempo apreensivo e furioso, forcei a aliança no dedo e abri a porta do carro, a dobradiça chiou, um cachorro latiu ao longe, arbustos farfalhavam próximo à porta da frente.
Naquela noite, minha casa adorável parecia incrivelmente ameaçadora, semelhante a uma linda mulher com ideias malignas na cabeça. Totalmente em alerta, segui pela calçada e abri a porta da frente com cautela, pisei no hall de entrada, uma das mãos carregando minha bolsa e a outra aguardava qualquer movimento brusco pra ir na lateral da minha costela, onde eu guardava minha arma.
Deixei a porta se fechar sozinha e segui em frente, olhos atentos para qualquer movimento.
- Timing perfeito. — pulei de susto, e quase mandei bala no meu próprio pé. Lizzie, ela havia surgido do nada, sorrateira e fatal, vestida para matar, por assim dizer, trazendo nas mãos dois martínis gelados, a mulher perfeita. Como nos velhos tempos, como se o universo inteiro não tivesse virado de cabeça para baixo desde que eu havia deixado aquela casa pela última vez.
-  Isso é novidade... - Lizzie vivia no meu pé por causa da bebida.
- Uma novidade boa, eu espero. - Ela disse, com um sorriso sedutor, depois empurrou a taça de cristal na minha direção, e por mero reflexo tirei a mão da parte interna do casaco, para pegá-la, onde estava a arma, coincidência? Ou truque esperto de uma assassina experiente? Ela ofereceu os lábios para um beijinho, beijei a como de costume, mas sem fechar os olhos e então notei: ela também não fechou os olhos.
- Voltou mais cedo - falou, em desafio.
- Estava com saudades.
- Eu também. - Seria imaginação minha ou teria ela rapidamente espiado o curativo na minha orelha? Mas Lizzie não disse nada e com o queixo, apontou para a sala de jantar. - Vamos?
- Après vous. (depois de você) - Eu disse, um perfeito cavalheiro, com um leve movimento dos ombro ela virou-se e seguiu na minha frente, deixei que meus olhos passeassem pelo corpo dela, à procura de alguma pista, talvez de armas. A primeira vez, em muitos anos, que de fato a enxergavam e a verdade seja dita, aquele vestido revelava muito mais do que escondia.
Nenhuma arma a bordo, pelo menos do tipo convencional, decerto eu teria me deleitado mais com a paisagem se não fosse o receio de que a qualquer minuto, Lizzie  pudesse estourar os meus miolos. Quando entrei na sala de jantar, minha apreensão ficou ainda maior, o lugar estava todo emperiquitado como se fôssemos receber a família real britânica em peso: flores, toalha de linho, talheres para todo lado. "Fica esperto", alertei a eu mesmo. "Ela vai aprontar a qualquer instante."
- Achei que você guardasse essas coisas para as ocasiões especiais - Falei.
- E jantar com meu marido não é uma ocasião especial? - ela chegou ao ponto de afastar uma cadeira para que eu sentasse, sentei-me devagar, meus olhos fixos nos dela, todos os sentidos atentos, como se fosse o maftre de um restaurante sofisticado, Lizzie retirou o guardanapo de linho de cima do meu prato, abriu-o com um gesto brusco e ruidoso - devo admitir que nesse momento senti um frio na espinha - e por fim estendeu-o em meu colo passando a mão levemente sobre minhas coxas.
-  Muito obrigado, amor. - Eu disse, fazendo o jogo dela.
- Por você eu faço tudo, meu amor. - Ela sussurrou.
Aposto que sim, aproveitei que Lizzie estava atrás de mim e furtivamente escondi minha faca sob o guardanapo. Aparentemente ela não notou, seguiu feliz para a cozinha, jogando um sorriso coquete por sobre o ombro antes de desaparecer. Lutei para reprimir uma sonora gargalhada nervosa, peguei meu drinque, até que vi algo na cozinha, pouco antes da porta se fechar, uma embalagem de soda cáustica sobre a bancada da pia. Minha taça congelou no ar, a poucos centímetros da boca. Caramba, como era mesmo o cheiro da soda cáustica? Farejei a bebida e nenhum cheiro esquisito, pensei. Quem sabe... mas isso não provava nada. Sem tirar os olhos da cozinha, derramei o drinque num vaso de flores sobre a mesa, torcendo para que elas não explodissem. Enquanto esperava, examinei a mesa à procura de... não sabia exatamente do quê: pistas, armas, armadilhas. Os talheres de prata brilhavam, ameaçadores, sob a luz das velas. O vinho se transformou num veículo para o veneno, o centro de mesa, em um instrumento de estrangulação, o arranjo de flores, um possível esconderijo para uma granada. Então minha mulher voltou à sala, carregando um assado nas mãos e sorrindo como uma assassina sem alma, o assado tinha uma faca cravada no topo, uma faca de aparência sinistra.
- Humm... carne assada, meu prato predileto. - A lâmina cintilava sob a luz das velas enquanto Lizzie afiava a faca, empunhando-a como se quisesse deixar bem claro que sabia cortar muito mais que um pedaço de carne. Como se tivesse vida própria, minha mão rapidamente se fechou em torno do pulso dela.
- Não, não, não... - Murmurei. - Você já teve trabalho demais preparando esta maravilha, deixa que eu corto. - de início ela resistiu mas à custa de muito charme, acabou cedendo. Fez questão de se afastar da mesa assim que a faca, afiada como uma gilete, passou às minhas mãos. Segurando a faca no ar, pronto para cravá-la na carne, vi o reflexo de Lizzie sobre a lâmina. Merda! Ela havia pegado outra faca, ainda maior que a primeira. O facão era grande o suficiente para abrir uma trilha no meio da floresta, mas ela usava-o para cortar pães, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Como uma desajeitada discípula de Martha Stewart. A situação era sinistra, nós dois ali, juntinhos, como se fôssemos recém-casados, talvez procurando meios para degolar um ao outro. Reparando em Lizzie, fiquei abismada com a facilidade com que ela manejava uma faca. Diabos, por que nunca havia notado isso antes? Aquela mulher tinha as mãos de um samurai, perguntei a eu mesmo o que ela usava para treinar.
- Como vão as coisas no trabalho? - Perguntei casualmente.
- Tudo bem - ela respondeu. - Na verdade, tivemos um probleminha com uma co-missão esta semana.
- É mesmo? - Perguntei, todas as antenas levantadas.
- É, duas empresas contratadas pra executar o mesmo serviço. - Servi uma fatia do assado no prato de Lizzie.
- E as coisas se arranjaram depois?
Ela serviu espargos, a faca um pouquinho próxima demais de um pedaço da minha anatomia - meu pescoço - que talvez ela não hesitasse em cortar também.
- Ainda não - ela falou. - Mas vão se arranjar. - Tudo bem, admito que até então eu vinha me comportando de maneira um tanto paranóica, procurando segundas intenções em cada detalhe sem importância mas agora eu tinha a nítida sensação de que conversávamos numa espécie de código, falando por enigmas. Sentamos nas cabeceiras da mesa, fora do alcance físico um do outro, ela bebericou o vinho e esperou que eu começasse a comer, olhei para o prato à minha frente, hesitante. E se a comida estivesse envenenada? Depois percebi Lizzie me observando com atenção, não podia deixar que ela notasse meu pavor, portanto, como um guerreiro medieval, parti um enorme naco da carne e acintosamente cravei os dentes nele. - Hummm... delicioso. - Eu disse, refreando o impulso de cuspir tudo no chão. - Fez alguma coisa diferente? - ela me encarou pela primeira vez naquela noite, já que estava ocupada olhando as cortinas, o prato, as paredes.
- Você sempre pergunta isso. -  O que mais eu poderia dizer depois de mil e oitocentas refeições ao lado dela? para virar o jogo, sorri entre dentes.
- Sempre me esqueço de como esse prato é delicioso. - Lizzie gostou do que ouviu e sorriu também, eu brincava com a comida, na tentativa de ganhar tempo.
- Você pode me passar... - Zuuum! Algo veio zunindo na minha direção, e automaticamente lancei a mão na mesa para pegá-lo. O saleiro. Fosse uma lâmina qualquer, eu estaria morto antes que o sorriso chegasse aos lábios dela. De certa forma, Lizzie estava fazendo o que sempre fazia, sempre caprichava na arrumação da mesa, sempre servia um jantar legal, como aqueles que aparecem nas revistas, sempre corria atrás da inatingível perfeição. Caramba, era como se eu comesse no mesmo restaurante todo santo dia mas naquela noite ela estava diferente, não estávamos apenas em um restaurante diferente, estávamos em outro planeta. Tudo parecia ter um subtexto, seus gestos pareciam sutilmente diferentes. Observei quando ela levou a mão ao copo de água, seus movimentos pareciam seguros, deliberados, cada um deles, uma linha reta. Como era possível que eu nunca tivesse percebido os músculos rijos que delineavam aqueles braços tão lindos? Aquele seu jeito de andar, gracioso como o de uma ninja? O estado de alerta constante, a reação imediata a qualquer barulho? Como uma verdadeira profissional, Lizzie tinha consciência de cada um de seus movimentos, sabia que reflexos bem condicionados e movimentos seguros muitas vezes significavam a diferença entre a vida e a morte. Talvez tivesse escondido todas essas coisas de mim ou talvez fosse eu que entediado demais, preocupado demais ou estúpido demais, não tivesse tido olhos para enxergar o que estava bem debaixo do meu nariz aquele tempo todo.
- Como foi em Atlanta? -  Ela perguntou especificamente, sabia muito bem que eu não tinha estado lá.
- Tive uns problemas com umas cargas - Respondi sem titubear. - Algumas pessoas desatentas demais.
-  Coisas importantes?
- Vitais - Nosso olhar se cruzou sobre a mesa, eu podia ver as chamas, talvez das velas que ardiam em seus olhos. - Mais um pouco de vinho? - ofereci, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, adiantei. - Deixe que eu sirvo, a garrafa está no meio da mesa. - levantei-me da cadeira e fui servi-la, gostei de ver o medo subitamente brotar nos olhos dela.

Elizabeth
Olhem só para isto... O filho da puta, sentado do outro lado da mesa, exatamente como vinha fazendo todas as noites por quatro longos anos. Os mesmos gestos, as mesmas palavras, como um marido de brinquedo, movido a pilha. Sempre sorrindo, sorrindo para mim, sorrindo para tudo o que eu dizia, sorrindo para o maldito pedaço de carne, sem jamais enxergar o que quer que fosse e mentindo deslavadamente durante todo esse tempo. Como foi em Atlanta, querido? "Tudo bem, fora uns problemas com uns desatentos. Blá, blá, blá." Acontece... Meu amor, que eu não estava em Atlanta, estava no deserto, tentando explodir os seus miolos com os meus CANHÕES! E bebendo do cantil de prata que eu dera a ele e... e... comendo minha torta! Por um instante fiquei ali, observando-o repetir o mesmo teatro de sempre. Será que pensava em mim quando não estava em casa? Será que riu da mulher ridícula quando enfiou minha torta naquela boca imunda? Será que fazia piadas com o meu nome quando se jogava nos braços de uma agente qualquer, provavelmente uma femme fatale, nas noitadas pós missão cumprida? Era por isso, então, que virava para o lado e dormia feito pedra sempre que passava as noites comigo, não que lhe faltasse apetite mas gastava cada gota de sua energia vivendo aquela emocionante vida dupla! As vezes a única coisa que me deixava acordada a noite inteira eram os seus movimentos repentinos na cama enquanto dormia! Canalha. Agora vinha para o meu lado, pronto para me servir mais uma taça de vinho. De repente, meu coração parou, não gostei nada daquele brilho em seu olhar. A questão era a seguinte: será que Bucky sabia que era eu, sua mulher, quem ela quase havia apagado naquele desfiladeiro no deserto? E agora estava ali para terminar o serviço? Talvez não soubesse, nem soubesse que eu sabia e no final das contas quisesse apenas me servir um pouco de vinho ou talvez estivesse cansada da mulher enfadonha e quisesse dar um fora nela apenas para fugir com alguma agentezinha ordinária! Ele vinha na minha direção, casualmente carregando a garrafa na palma da mão, olhos sempre pregados nos meus. Aquela garrafa me deixou tensa, se quisesse, Bucky não teria a menor dificuldade para espatifá-la no meu crânio. Meus olhos procuraram a faca mais próxima, prendi a respiração, cruzei as pernas, levantei minha taça. Quando Bucky se abaixou para me servir - ou matar - percebi que ele parecia surpreso. Meu vestido havia subido do lado esquerdo, revelando meu joelho enfaixado e os hematomas adquiridos na queda sobre as rochas no deserto. Bucky deixou a garrafa escorregar da mão, em um gesto rápido, estiquei o braço e peguei a garrafa em pleno vôo.
Uma manobra brilhante, reflexos excelentes, reflexos incomuns para uma informática, que estupidez, a minha. Bucky lentamente abriu um sorriso, nosso olhar se cruzou outra vez. Ele sabia e sabia que eu sabia e agora eu sabia que ele sabia que eu sabia. Isso mesmo. De repente nos transformamos em um casal que sabia demais. Soltei a garrafa, vendo-a cair - aparentemente em câmera lenta - em direção ao nosso tapete perfeitamente branco, fui surpreendida por certas lembranças... Nosso encontro em Sokovia, Bucky sempre envolvido nas coisas, nunca lhe perguntei o que estava fazendo por lá, nem por que saía em horários tão estranhos para supervisionar as entregas que sua transportadora vazia. Só me interessavam aquelas horas abençoadas em que ele estava livre para passar em minha cama. Quando não estava fazendo amor com ele, cuidava das missões que me haviam levado até lá. Três assassinatos em apenas uma semana. E ele? Decerto fazia exatamente o mesmo. O canalha vinha mentindo para mim desde o início. Com um barulho surdo, a garrafa se esborrachou no chão, espalhando vinho para todos os lados e cobrindo nosso tapete perfeito com uma terrível mancha vermelho- sangue.

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Agora começa a porradaria desses dois!

Sr. e Sra. Barnes Onde histórias criam vida. Descubra agora