A maior parte da estalagem já estava presa nas terras inconscientes do sono, havia pouca movimentação no grande salão, apenas um punhado de mercadores cheirando a licor e com vozes embriagadas, uma jovem que ainda estava se alimentando e o próprio estalageiro e um ajudante de aspecto cansado.De modo que a figura em vestes negras e com uma bandeija em mãos que caminhava lentamente até o fim do corredor, era a única movimentação no andar de cima. Seus dedos se fecham perto da porta como se fosse bater na mesma mas não o faz, hesitante seus olhos se apertam e por fim o som das batidas leves são ouvidas no interior do quarto. Não demora muito para que Xiao Xingchen abra a porta, usando o habitual robe branco e com os longos cabelos completamente soltos.
"Estava na cama?"
Ele nega "Estava apenas obervando a lua pela janela."
Xue Yang entra no quarto e a porta se fecha atrás de ambos "O que se tem para olhar na mesma lua de sempre todos os dias?"
Ele coloca a bandeija com chá de ameixas na mesa de centro e logo ambos se sentam "O que não teria para se olhar? Apesar de ser a mesma lua, sempre parece existir algo novo a cada noite..."
"É uma luz distante e por vezes solitária não acha?"
Xiao nega prontamente "Ela é única e trás consigo a memória de muitos. Em tempos antigos na superfície do lago de armas sagradas, a luz da lua parecia transformar as água em um lago branco e brilhante... pois naquelas águas estava refletido a vida de muitos, memórias preciosas guardadas com cuidado pela luz esbranquiçada do luar."
Xue Yang ri colocando o chá para o monge daoísta "Acredita mesmo nisso?"
"Claro." Ele sorri.
O olhar de ambos se encontram e o ar parece fluir mais lentamente pelo cômodo, na mente a memória do beijo recente parece queimar como o resquício de faísca que se mantém vivo apesar da lenha ter se acabado... Xiao Xingchen é o primeiro a desviar o olhar o que faz um sorriso leve surgir nos lábios de Duas Faces em Sangue.
"Você disse que tinha que falar comigo, estou aqui para te ouvir."
Estando agora frente à frente com Xue Yang é como se as palavras escapassem como fumaça da mente de Xiao Xingchen, como se já não soubesse definir tudo que se passa em seu peito... por onde ele deveria começar?
"Quando você soube quem eu era realmente?" Xue Yang pergunta olhando para Xiao que dá de ombros.
"Pensei por muito tempo, estava claro para mim que não era um mero cultivador qualquer... não sabia o que pensar, o que formar em minha cabeça juntando peças do pouco que sabia sobre você. Mas depois, pareceu claro demais."
"Por que não fugiu ou tentou me matar?"
"Minha vida inteira eu lutei contra cultivadores demoníacos, arrancando a raiz das Seitas mais vis que já se pode ter ideia, defendi clãs justos e nunca me importei de me colocar em risco para salvar cidades inteiras... mas acima de tudo isso, eu ainda sou um mero mortal... ainda estou em risco, ainda me encontro triste as vezes, feliz em outras, perdido, motivado ou o que quer que seja... ainda não sei julgar alguns sentimentos como ruins. Assim como nem sempre pude evitar a morte de alguns, eu não pude evitar o que os dias ao seu lado faria comigo" Ele sorri "As coisas que senti com você, aquelas que jamais encontrei por todos os lugares pelos quais passei. Aquela sensação que encontrava imortalizada em contos ou em histórias fragmentadas."
A cada palavra do monge daoísta é como se algo se iluminasse dentro de Xue Yang, seu coração parecia eufórico enquanto um lado de sua mente dizia que ele não poderia, não dessa vez, ele não mancharia Xiao. Se este soubesse que o próprio sangue já esteve nas mãos de Xue Yang... ele não pensaria assim.
"Xiao, eu não sou a boa pessoa que você acha que eu sou. Muito além de ser Mestre da maior seita demoníaca, além de todas as pessoas que já morreram por minha lâmina, existem coisas muito piores que já fiz... você entende isso? Eu não sou a pessoa para estar ao seu lado, nos encontrarmos não passou de um mero acaso, e tudo o que fiz foi para te ver bem... eu lhe disse uma vez que só esperava que estivesse ao meu lado até tudo isso acabar, não além."
Xue Yang se levanta mas é impedido pelas mãos de Xiao que seguram sua manga "E se eu quiser continuar ao seu lado além disso? Espere que eu apenas o deixe ir?" Ele faz Xue Yang olhar para ele e não demora a notar que os olhos negros estavam marejados, no fundo de sua íris um brilho escarlate parecia querer sair.
"Xiao..."
"Você se jogou para a morte para me salvar... ousa dizer que não sente nada por mim?"
Não é isso...
"Aquele dia... em meu quarto, você me beijou... não beijou? Quando eu estava dormindo. Você fez isso sem sentir nada por mim?"
"Você não entende que eu posso te machucar?" A voz de Xue Yang sai alta, suas mãos seguram o pulso de Xiao e a força faz com que o mesmo bata na parede, com o cultivador demoníaco na sua frente, o encurralando "Eu não quero te machucar Xiao Xingchen, você não vê isso?"
Ele abaixa o rosto fechando os olhos para impedir uma lágrima de cair, sua visão estava turva "Não... pois eu só consigo ver você, não esse monstro que você pinta."
Xue Yang olha para cima, os olhos queimando em um vermelho sangue, seus dedos trêmulos marcariam a pele clara dos pulsos do outro, a lágrima solitária cai de seus olhos como uma cascata de fluxo suave... ele se sente deplorável como nunca antes esteve... mas ainda assim os olhos negros que o observam são gentis, e um curvar tão leviano ainda esta desenhado nos lábios avermelhados e bem contornados... não existe nada além da luz no peito de Xiao, e em sua visão nada além de Xue Yang parece existir.
Os pulsos de Xiao Xingchen escorregam para baixo quando são soltos, os dedos que ainda tremiam por baixo da luva parece pesar, fazendo o corpo de Xue Yang desabar no chão.
Ele nunca foi uma pessoa boa, sempre parecia existir algo de errado com sua cabeça, como uma voz sussurrante ecoando no palco de seu crânio que o fazia pior, que o fazia cruel e incapaz. Nos segundos que se passaram até seu corpo alcançar o chão, muitas coisas o acertaram em um só golpe. O passado recente, as memórias turvas de uma vida passada, os pensamentos sombrios... Xiao...
Duas Faces em Sangue chorou, como uma criança que teve de suportar muito por muito tempo, sozinho... seu corpo parecia queimar por dentro, a rachadura em sua casca apareceu, ele estava fraco e vulnerável... mas ainda havia braços gentis ao seu redor, e embolado no calor de Xiao Xingchen ele notou no bater do coração puro do outro, que o ritmo era o mesmo que o seu...
Neste momento a flor vermelho sangue se permitiu escorrer pela neve imaculada.
■ ■ ■
Xiao Xingchen observa sentado perto da janela o cultivador demoníaco iluminado apenas pela luz do luar, os longos cabelos negros caídos pela cama, os cílios longos que dão caminho para o rosto manchado por lágrimas que antes escorreram. Havia muita dor nos olhos de Xue Yang, que parecia perfurar os ossos do monge daoísta.
Tudo que ele pode fazer foi ampará-lo em teus braços como se estes fossem capazes de protegê-lo de todo mal existente no mundo. Mas o que fazer quando os demônios estão dentro de nós? Como fazer essa dor sair dos belos olhos profundos, que parecem carregar um peso de vidas inteiras?
Uma vez, Xiao havia ouvido que apenas um grande e verdadeiro amor poderia quebrar certas barreiras, que apenas um poderoso e puro sentimento era capaz de trazer à vida aquelas partes de nosso ser que se fragmentam com os duros golpes que surgem ao longo dos anos, cravando profundamente em nossa pele sem pudor algum. Ele seria capaz de alcançar essas partes do outro? Seria capaz de fazê-lo ver que bem ou mal, sendo Xue Yang ou Duas Faces em Sangue, é apenas ele que Xiao deseja ter em sua vida?
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"Eclipse em um Lampejo de Luz" *XueXiao*
Fanfic"Era uma vez uma criança que gostava muito de comer bala... como era um órfão pobre, nunca pôde comer nenhuma. Ela vivia sonhando que alguém lhe daria uma bala todos os dias..." A lâmina fria de Fuxue fervilhava com o sangue quente do cultivador de...