"O que você quer fazer, ficar comigo por todos esses anos?"O gosto amargo do sangue que tingia os lábios finos de Xue Yang, parecia se dispersar aos poucos, a mesma medida que o corpo débil se entorpecia em dor e os olhos se apertavam sofrendo com os raios de luz que vinham de todas as direções.
"Quem sabe? Talvez eu esteja entediado."
Uma confusão se forma em sua cabeça, a realidade parece se deturpar, e a consciência agora é pouca.
"Foi divertido?"
"Sim. Claro que foi divertido"
As memórias preenchem os espaços vazios de sua cabeça, perdendo completamente a ordem cronológica dos fatos. Mas já não importa mais... pois nada parece real, nada parece físico.
Uma eternidade parece se passar entre a confusão mental e o desmaio pleno, sendo que tudo não durou mais que o tempo necessário para um incenso se acabar.
O mundo para de girar e Xue Yang se dá conta que está em cima de algo desconfortável, mas ainda assim quente. O som de algo caindo no chão é irritantemente repetitivo, e faz eco por todo o espaço quase que vazio, são gotas de água que esvaem de um buraco no teto gasto de madeira. O cheiro de mofo e decadência é evidente, a mistura de algo molhado com esterco de semanas atrás faz com que seja difícil respirar sem sentir que irá jogar para fora tudo que está em seu estômago. Isso se o estômago do pequeno garoto coberto de sangue seco não estivesse tão vazio.
A quantos dias ele não se alimentava?
Os olhos negros se apertam e provam dor no primeiro momento de consciência. Sem nem precisar olhar ao redor, Xue Yang pode dizer com precisão que lugar é esse.
E ao encarar o teto gasto pela primeira vez, ele constata que não está mais preso no centro do julgamento circular, não está no Reino Inferior, e nenhum Ceifador o espreita no escuro entre as montanhas de feno. Tudo parece um sonho distante causado pelos devaneios da fome e desidratação. Havia de ser um sonho, mas o jovem delinquente sabia que não era. Foi real, e se ele se esforçasse um pouco poderia reviver vividamente a dor do mais puro qi que invadiu seu dantian, que agora não passa de um lago vazio.
Estava de volta aos dias miseráveis e sombrios de sua infância. Um pano cheio de buracos estava envolto na ferida recente do dedo que fora perdido, as vestes que mais pareciam sacos de legumes estavam fedendo a sangue seco e desespero, fora a camada de lama que os adornava. A situação só não era pior do que a da pequena pessoa por baixo das vestes.
"Era um grande desvio me mandar para uns dias atrás? Eu poderia ter evitado essa merda."
Xue Yang se senta com grande esforço, pois estava preso em seu corpo moribundo e quase seco. Gastando grande parte de sua energia, ele se arrasta até um longo recipiente com uma água que um dia fora límpida, mas agora parece suja demais para ser capaz de limpar alguém, ainda mais no estado em que se encontrava.
O corpo parece se lembrar do espancamento de dias anteriores, da carruagem... até mesmo a própria mente de Xue Yang parece se lembrar disso com naturalidade.
Uma mente vingativa jamais se esquecerá de algo assim, mesmo se alguém apenas atirar uma pedra em seu caminho, ele se lembraria e algum dia arrancaria as mãos dessa pessoa. E seu dedo o quanto valia?
Em sua vida anterior, custou um clã inteiro, não há de ser diferente agora.
Rapidamente ele se limpa a medida que pode, apenas para se esgueirar para fora do galpão sujo e abandonado. As ruas da pequena vila pobre que pertencia a um clã nada proeminente, estão vazias, muitos não se arriscam em sair de suas casas ao cair da noite, pois assim se tornariam alvos fáceis para os ladrões que espreitavam.
O local mais próximo de uma grande cidade ficava a dias e mais dias de caminhada, e a região pertencia a Seita QingheNie. Para o grande cultivador demoníaco que pode recriar metade de um grande amuleto maligno, dois dias era suficiente para chegar aos portões do Reino Impuro, mas para uma criança faminta e tão magra ao ponto de não ser atrativo nem para feras selvagens, demoraria quase um mês, teria sorte de não ser morto no caminho ou morrer de frio ou fome.
Xue Yang sabia disso, assim como sabia que precisaria de pedras espirituais para conseguir chegar até o destino mais próximo, de roupas novas e de boa qualidade e também de uma arma, seja para se defender ou caçar.
Caminhando a passos lentos, Xue Yang passa por todo o entorno da vila, os olhos astutos encontram um alvo fácil. Uma casa que fica nas proximidades do clã central, não tem nenhum guarda por perto e facilmente ele poderia se esgueirar para dentro e pegar o que fosse necessário.
Quando o mundo desaparece e a luz branca imortal é a única iluminação, ninguém é capaz de ver o pequeno delinquente que entra por um vão em uma das janelas. A casa está silenciosa, e o único som é o leve ranger do piso em seus pés.
Como um vulto sorrateiro Xue Yang pega tudo que poderá lhe servir, aparentemente a casa pertence a um praticamente das artes marciais, pois uma cimitarra está posta ao lado da cama onde jaz um ser em profundo sono. Com um sorriso no rosto, as mãos hábeis pegam a cimitarra como última necessidade.
O pobre futuro guarda só notaria que fora roubado pela manhã, quando o ladrão já estivesse bem longe, longe da estrada principal mas na mata virgem.
Mesmo com os pés pequenos e velocidade medíocre, Xue Yang já alimentado de pão que roubou, conseguiu chegar perto das montanhas, parando apenas quando o sol passou a despontar no horizonte.
Com a roupa ainda suja grudada no corpo suado, ele se encosta em um tronco de orvalho a beira de um rio de águas límpidas e quase que suaves. Após uma exaustiva madrugada, seu corpo parecia ter sido levado ao mais puro cansaço.
"Por enquanto está bom."
Rapidamente suas roupas são jogadas em um canto, o corpo esguio e magro, completamente exposto mergulha nas águas do rio, os olhos fechados sentindo a sujeira e o sangue ir embora com a leve correnteza.
Apesar de grande, o par do manto que ele trouxe consigo pode servir com alguns ajustes.
Depois de estar mais apresentável ao ponto de não chamar atenção, Xue Yang poderia tomar o caminho principal usado pelos viajantes das proximidades. Com toda a vida passada gravada em sua cabeça, Xue Yang sabe que próximo ao domínio do proeminente clã Nie, saqueadores fazem um leilão sorrateiro de preciosidades e qualquer objeto útil para o cultivo. Dessa forma ele poderia comprar com o pouco que roubou e que usurpará em sua viagem, uma bolsa Qiankun e uma arma mais apropriada, pois o manejo de uma cimitarra está longe da perfeição em suas mãos.
Depois de se aprontar e descansar um pouco ainda na beira do rio, Xue Yang pensa em seus próximos passos.
"Poderei me estabelecer na Yi City, e passar despercebido por anos até que alcance a perfeição de meu cultivo." Um riso escapa de seus lábios "Desta vez eu não vou morrer por suas mãos Song Lan."
Existem muitos meios de conseguir cultivar para além do caminho Justo, e métodos demoníacos são tão diversificados quanto poderiam ser. E para Xue Yang, muitos destes métodos seriam eficazes, pois em seu corpo corre o mais puro Yin formado em suas raízes, sua aptidão para o culto demoníaco era anormal e verdadeiramente um achado raro.
Em sua vida passada seus feitos foram restringidos pelas Seitas que ele se filiara, mas desta vez será diferente. Mesmo que ele tenha que passar pela maior das calamidades e pelo próprio inferno, assim será.
Quando a tarde se aproximou Xue Yang despertou de um sonho atormentador, e quando retomou sua jornada, em sua mente ainda estava gravado o sorriso do cultivador em vestes brancas imaculadas, e sua beleza pura que não parecia ser abalada mesmo pelas faixas sujas de sangue que cobriam o vazio onde antes estivera seus olhos.
Como um fantasma sorrateiro, todos seus momentos de sono tinham a presença de Xiao Xingchen, que não fazia idéia que para muito além das Montanhas Celestes, Xue Yang o recordava todos os dias, e assim seria pelos longos anos que se seguiriam...
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"Eclipse em um Lampejo de Luz" *XueXiao*
Fiksi Penggemar"Era uma vez uma criança que gostava muito de comer bala... como era um órfão pobre, nunca pôde comer nenhuma. Ela vivia sonhando que alguém lhe daria uma bala todos os dias..." A lâmina fria de Fuxue fervilhava com o sangue quente do cultivador de...