Escuridão programada

221 26 11
                                    

Manter a respiração. Tentar manter a respiração.

Respirei algumas vezes para tentar tomar fôlego e reagir. Reagir? Ou não? Vários pensamentos me vieram à cabeça.

-Solte-me e poderemos conversar civilizadamente. - Foi o que consegui falar. Talvez não tenha sido a coisa mais inteligente a se fazer. Mas há muito tempo atrás, aprendi com um sábio homem de que as palavras são a melhor forma de se começar uma rebelião. Senti o aperto em meu pescoço afrouxar e caí sobre meus joelhos, tomando rajadas de vento e respirando intensamente. O homem deu alguns passos e parou à minha frente. Eu via apenas seus sapatos, ainda caída.

-Levante-se, Cupido. - A última palavra soou como um aviso. Preguiçosa e desenrolada em seus lábios. Minha mão trancou-se em um punho encharcado de violência. Estava pronta para encará-lo. Estava pronta para transformá-lo em pó, se fosse preciso. Apoiei-me em uma mão e levantei-me. Olhos azuis me encaravam. Não do tipo bonitos, ou profundos. Ou qualquer palavra gentil que você possa imaginar. Olhos azuis negros. Cheios de dor e aflição. E eu não precisava ter poderes para saber disto. Os cabelos loiros. Sim. O mesmo homem do restaurante, e ele estava me vigiando.

-Quem é você e o que você quer. Responda rapidamente. - Eu disse. E soou exatamente como eu queria. Imponente, autoritário. Encarei-o, e coloquei meus olhos fixos aos seus, por mais que isso fosse difícil.

-Você vai querer me ouvir. Isso também te interessa. Eu quero entrar. - Dirigiu-se sem permissão até à sala de Maria. Fechei a porta a contragosto e sentei-me no sofá em frente a ele. - Muito prazer. - Ele disse. - Eu sou o Cupido.

-O quê? - Baixei a guarda.

-Eu sou o Cupido. E você também. E eu tenho mais certeza de que outras pessoas também.

-Olha... - Comecei a dizer.

-Não, isso não é uma brincadeira. - Encarou-me, com uma mistura de consternação e ira em suas faces. - Desde o século dezoito, assim como você, tenho tomado conta da vida amorosa de muitas pessoas. Há dois anos, minha coordenadora disse-me que eu estava com problemas para juntar casais e que deveríamos tentar um novo acordo. Eu ficaria no corpo de alguns humanos por duas semanas para poder consertar meus erros. E adivinha? Depois de duas semanas, ela não voltou mais. Meus poderes desapareceram. E sou invisível para as pessoas. Para os humanos. Foi quando você me viu. Você olhou nos meus olhos. Eu te observei. Eu sei que você também é como eu.

-Por que ela nunca voltou?

-Não sei. Só sei que aos poucos fui desaparecendo para os humanos. Pesquisei mais e mais, andei o mundo todo. E vi pessoas como nós, Cupidos.

-E como você sabia que eu era uma?

-Não se olhou no espelho? Os seus olhos estão ficando negros. Escuros, assim como os meus. Meus olhos eram azuis como a cor do céu. Depois de ter entrado no corpo dos humanos, eles começaram a escurecer. E a cada dia ficam mais escuros. Temo o que poderá acontecer assim que ficarem negros por completo.

-Isso é insano. - Coloquei as mãos em minhas têmporas e comecei a massageá-las. - Como era a sua coordenadora? Descreva a aparência dela.

-Olhos multicoloridos. Mau humor. Cabelos grisalhos. Rugas. - Meu punho foi de encontro à mesa. Minhas veias estavam à mostra. Minhas faces ruborizadas, em consequência da minha raiva.

-Eu achei que eu estivesse sozinha nesta porcaria deste mundo! Achei que ela fosse a única pessoa, além do Ódio, que soubesse da minha existência. Achei que eu fosse O Cupido. Apenas eu!

-Todos nós achamos.

-E qual é a solução?

-Não tenho uma. Na verdade, não sei nem o que pode acontecer assim que meus olhos ficarem completamente negros. Eu só achei que você merecia saber disto.

-Quero que você reúna todos de nós.

-Como?

-Você ouviu o que eu disse. Ache mais de nós. Mais "Cupidos". Junte-os. E vamos começar aquilo que já deveríamos ter começado há muito tempo. Juntando-nos, poderemos achar uma situação para o nosso problema. Agora, eu realmente não entendo o porquê disso tudo. Por que ela nos deixaria aqui, para morrer como vermes? E se há apenas uma coordenadora, porque somos vários Cupidos? São muitas perguntas e poucas respostas.

-Esqueça o seu trabalho de juntar almas, por enquanto. Venha comigo, e cuidaremos dos nossos problemas.

-Não posso.

-Por que não?

-Envolvi-me com um humano. Ele sabe da minha história, que agora eu sei que não é só minha. Virá atrás de mim.

-Então carregue-o conosco.

-Precisamos fazer uma lista de prioridades. Descobrir aonde a coordenadora está. Descobrir porque nós não lembramos de nada. Descobrir quem éramos antes de sermos estes seres incompreensíveis. E mais, descobrir quem é a coordenadora.

-A última é, definitivamente, minha maior pergunta.

Um silêncio constrangedor se segue por alguns minutos. Em parte constrangedor, em parte respeitoso. Sigo até a cozinha e faço algo para que o meu mais novo amigo Cupido possa comer.

-Não sei ao menos meu nome. - Digo, enquanto ele enfia alguns pedaços de nuggets na boca. Ele resmunga alguma coisa sobre nenhum de nós sabermos o nosso nome. Nem nossas origens.

-Acredito que nem a nossa forma de Cupido era verdadeira. - Ele suspirou. - Quer dizer, éramos algo meio parecido com espíritos, meio disformes. E eu realmente acho que eu era um ser humano antes de ser isto. Durante as minhas duas semanas como ser humano, eu só fiquei em corpos de homens. Ou seja, ambos sabemos que você é mulher e eu sou homem. Mas como sabemos disso? Sabemos porque tudo têm a tendência de voltar ao estado inicial. Não é?

-Faz sentido.

Não precisamos trocar muitas palavras depois disto. Ele ficou no sofá e eu joguei o corpo de Maria à cama. Há milhares de anos, fiz algo que nunca havia feito. Chorei como uma criança. Uma lágrima após a outra, fazendo cócegas no meu rosto. Eu não sabia se chorava por ser ignorante, ou se chorava por saber das coisas que antes não sabia. Ou até mesmo se chorava pela certeza de que eu nunca seria alguém. Como você. Como todos os seres humanos na face da Terra. Os soluços sufocavam-me. E deixei, deixei que o torpor me consumisse até que o sono vencesse.

Bem... Não está exatamente como eu queria. Fiz algumas partes com pressa (pressa mesmo!) por conta do pouco tempo que tive. Mas, espero que vocês gostem e que algumas coisas tenham ficado claras para vocês. Ainda há muitos mistérios para serem descobertos, mas por enquanto, é isso. Love u all, thanks for everything

MemóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora