Nem mesmo os piores momentos são ruins

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-Panteão. - Eu os olhava e todos me encaravam inexpressivamente. - Vocês irão até lá. O trabalho no Louvre é meu. 

-Fora de questão. Você não vai sozinha a lugar algum. - Olhos azuis me fitavam através de cílios enormes. 

-Deixe que me matem, Gabriel. Melhor ser morta agora, enquanto posso fazer algo por vocês. Preciso ir atrás de respostas. Eu sei que Javier está lá, parado no Louvre, esperando o momento em que eu chegarei, talvez como um amigo, talvez como um inimigo. Não imagino o que me espera, mas tenho a absoluta certeza de que comigo saindo de lá ou não, vocês terão respostas. Sei que não sou só eu que tenho a vontade de saber algo do meu passado. 

-Conversamos com os Cupidos que foram encarcerados.

-E...? 

-Lavagem cerebral. Eles não se lembram de absolutamente nada até o momento em que chegamos para resgatá-los.

-Maldito. - Sussurrei. 

-Oi?

-Nada. Mas nada muda a minha conclusão. Quero todos vocês no Panteão. Eu vou sozinha. Não quero ninguém me seguindo. 

-Você não tem o direito de decidir isso.

-Acho que eu tenho o total direito sobre a minha própria vida, Gabriel. - Parei a centímetros de seu rosto, sendo motivo de espetáculo para as pessoas ao nosso redor. Olhamo-nos por breves três segundos, mas que foram suficiente para causar um silêncio mórbido e constrangedor. - Vão. - Houve uma rápida movimentação depois da ordem. Até mesmo Gabriel começou a pegar seus pertences em silêncio.

Deitei-me na cama e pedi.

Apareça. Desta vez, apareça.

(...)

Tudo escuro. Nenhuma centelha de luz. Minhas mãos geladas. Aonde estou? Sim, estou sonhando. Agora me recordo. Javier? Aonde está Javier?

A luz é acesa. Fecho os olhos porque não aguento a claridade, que me atinge como se eu houvesse passado anos em um lugar escuro. Resmungo mentalmente e esfrego os olhos, para que aos poucos me acostume com a claridade. Embaçados, aos poucos eles se acostumam, e eu consigo vê-lo à minha frente. Javier. 

-Chamou? - Um sorriso divertido. Sim, ele está se divertindo. Será que é porque eu pedi que ele aparecesse em meus sonhos?

-Quase isso. Não ache que foi porque eu queria te ver. É apenas porque... Porque eu irei ao Louvre. Hoje. 

-Você decidiu me encontrar, então. Está com saudades?

-Mentiria se dissesse que não. Mas estar com saudades não significa que eu não o perdoei. Ou que você pode agir como se nada tivesse acontecido. Ou que eu confio em você.

-Eu estava apenas querendo descontrair.

-Eu imagino. 

-Oi? - Os olhos cor de âmbar são doces. Suas sobrancelhas arqueadas dão um ar ainda mais sutil e leve ao seu rosto. Oh, céus, como eu gostaria de beijá-lo. 

-Eu imagino quem você seja, Javier.

-Já tem pistas?

-Humano, você com certeza não é. Esse já é o primeiro passo da sua mentira. - Suspiro. - Você fala comigo através de sonhos. Fingi estar desesperada para você aparecer nos meus sonhos. E você apareceu. Você tem algum tipo de conexão comigo, Javier. Eu só não sei como isso funciona, mas é. 

-Então, você vai mesmo aparecer hoje? - Ele desvia a atenção do assunto.

-Vou. E é bom que você me entregue os reféns.

-Você não vai trazer Gabriel, não é?

-Não sei, Javier. Eu posso levar quem eu quiser, eu estou em desvantagem, não você. Eu fui traída, não você. Eu estou prestes a morrer, não você.

-Estarei te esperando. 

-Espere sentado. Vou demorar o tempo que precisar. 

(...)

Os olhos dele ainda pareciam estar sobre mim na hora em que eu acordei. O apartamento vazio indicava que Gabriel já havia saído com os outros Cupidos, e o sol se punha lá fora. Meu coração batia com ansiedade visível, sabendo que daqui a poucas horas minha vida poderia ser mudada completamente. Peguei uma quantidade considerável de dinheiro e saí em busca de alguma roupa decente. Eu iria encontrar-me com Javier, e mesmo que não fosse o encontro dos meus sonhos, estaria me encontrando com a pessoa dos meus sonhos. O garoto sonhador que eu havia encontrado. O garoto que me acolheu, que cuidou de mim, independentemente de quem eu era. Todas as palavras, todos os sorrisos, gestos, beijos... Não poderiam ser mentira. 

Decidi por um vestido roxo, um sobretudo e um scarpin. Eu estava decididamente bonita e pronta para ser morta. Sim, para ser morta, e não para matar. Vestida daquele jeito eu não conseguiria nem mesmo matar uma mosca. A verdade? Eu nunca tive medo da morte. 

-Você está muito bonita. - A vendedora falou. Os olhos azuis brilhantes e puros lembraram-me dos olhos de Gabriel. - Irá sair com o namorado?

-Quase isso. Não sei se ele realmente tem interesse em mim. - O que não deixava de ser verdade.

-Se ele não tem, ele vai ficar muito interessado. Sei de um salão aqui perto no qual você pode fazer cabelo e maquiagem, o que acha? Posso conseguir um preço melhor para você, eu conheço a dona do salão. 

-Faria mesmo isso?

-Claro. Simpatizei-me com você.

-Você é a primeira. - Falei e sorri. Sorri de verdade, sorri por ver o sorriso de alguém. Sorri porque talvez jamais pudesse sorrir novamente. Sorri porque em meu túmulo estaria a vaga lembrança de um sorriso para uma doce menina loira dos olhos azuis. 

No salão, fofocas e mais fofocas. Jamais pensei que realmente pudesse agir como uma mulher. E não poderia descrever isso como mais nem menos do que libertador. Viver o tempo todo falando sobre coisas sérias, pensando em coisas sérias, tentando sobreviver, é realmente desafiador. O mundo seria muito mais fácil se falássemos o tempo todo de cabelo, unha, maquiagem, pessoas famosas e relacionamentos amorosos. Enquanto as mulheres contavam suas vidas, eu apenas ouvia atentamente e dava meus conselhos ao final de cada história. E era prazeroso saber novamente da vida das pessoas, me sentir novamente um Cupido. Cuidar das pessoas como eu deveria cuidar.

-Mas, qual é o seu nome? - A cabeleireira, de olhos pequenos e negros, cabelo curto e quilos a mais me perguntou.

-Íris. - Eu respondi. E não sabia, eu mesma, como me sentia em relação a esse nome. Só sentia que era ele, só sentia que realmente era o meu nome.

-Que lindo nome. - Falou, enquanto dava o toque final no meu cabelo. - Você está maravilhosa. - As outras mulheres do salão me olhavam com sorrisos no rosto, com a cabeça levemente inclinada para direita ou para a esquerda, e me vi obrigada a sorrir. 

Depois de abraços, beijos e despedidas. Dirigi-me ao Louvre. A construção do lado de fora era realmente ainda mais magnífica vista pessoalmente. Tomei fôlego e entrei. A entrada principal estava lotada de pessoas. Olhei para a escada em espiral e para o guarda-corpo de vidro. E lá estava ele. Vestido magnificamente. Cabelos levemente jogados para a direita. O corpo delineado por um terno que com certeza deveria custar em torno de mil euros. Sua cabeça virou em minha direção, seus olhos nos meus, mesmo com toda aquela distância e com tantas pessoas ao redor. Ele sorriu. 

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