Falas Inapropriadas

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        Perfeito. Novamente, eu precisei utilizar a palavra que tanto temia em pronunciar. Quando nossos lábios foram selados, várias coisas aconteceram ao mesmo tempo: O insistente frio em minha barriga, a cabeça girando em desespero e minha deusa interior saltitando de emoção. Acreditando que poderia haver alguma chance. Acreditando que talvez eu - Cupido - pudesse ter uma chance com aquele homem magnífico. 

        Precisei lutar para que meus olhos entrassem novamente em foco depois que a pressão nos meus lábios cedeu. Ainda sentia como se estivéssemos nos beijando, o ardor em meus lábios palpável, presente e insistente. 

        Ignorar sentimentos é difícil. E é ainda pior para mim, que passei tantos anos trabalhando com o amor, face a face; sem ao menos conhecê-lo por mim mesma. 

        Em um gesto de aquiescência, respondo mentalmente à uma pergunta que gostaria que ele me fizesse. "-E então, gostou?" - Eu o imaginei questionando. Eu diria que sim, que eu adorei, que finalmente pude sentir o que é ser amada. Mas a pergunta foi ainda melhor do que esta. 

-Como você se sente? - Ele disse, excedendo minhas expectativas.

-Sinto. Apenas. É bom sentir. Várias coisas ao mesmo tempo. 

-Isso soou estranho. - Ele suspirou. Sua respiração estava mais alta. Respirava com dificuldade, e percebi que eu estava respirando tão bem quanto ele. Não seja besta, eu me repreendi. Diga algo legal. 

-Poucos momentos me seriam tão bons quanto este. 

-É importante para mim saber disto. Quer dizer, perdoe-me pela minha imprudência, não sei se fiz certo. Eu poderia ter esperado mais, mas parte de mim queria isto. Eu não sei o que fiz. 

-Arrepende-se? - Eu disse. 

-Arrependimento não está no meu dicionário. E quanto a você?

-Se isso o que eu sinto é arrependimento, eu gostaria de me arrepender todos os dias. 

-E o que você sente?

-Sinto como se fosse o dia mais importante da minha vida. - As palavras saíam, fluentes. Eu sabia que um beijo, na vida de qualquer mulher, era uma coisa banal. Normal. Mas nunca havia pensado que algum dia eu conseguiria fazer isto. 

-Sinto-me culpado. Não deixarei que você vá embora.

-Eu precisarei ir. - Estava falando como Cupido. - Precisarei ir embora. E pode ser que amanhã eu não seja a mesma, que eu não aja do mesmo jeito, e que quando você me procurar, nada mais seja igual. - A roda gigante parou e nós descemos. 

-Do que você está falando?

-Da vida. Ela é injusta e as coisas não ocorrem como nós planejamos. - Falei enquanto nós andávamos. - A gente pensa que tudo vai continuar igual, que nada vai mudar. Que as pessoas serão as mesmas, que os sentimentos serão os mesmos, que será uma monotonia eterna. A gente vê a vida cinza, e acredita que não existe cor além do cinza. A gente não se esforça para mudar, e têm medo de mudança. E todos os dias eu penso o quanto eu tenho medo de mudar, tenho medo de sair da minha rotina, tenho medo de ser diferente.

-Mas nós não viemos aqui hoje? - Ele disse.

-Não se trata disso! - Eu gritei. Eu estava chorando, e a sensação era completamente libertadora. Aliviava até o mais impuro sentimento da alma, como se fosse uma torneira de impurezas. - Não se trata disso tudo. - Eu balancei os braços no ar, girando. - Trata-se de mim. - Sentei-me na calçada. 

        Chorei por alguns minutos, enquanto seu silêncio respeitoso significava reverência ao meu sofrimento. Minhas lágrimas foram perdendo força aos poucos, e eu enxuguei-as com as costas das mãos. Suspirei o ar carregado da cidade.

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