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Meus joelhos fracos não conseguiam sustentar o peso do meu corpo. Jogada aos braços de Javier, o único lugar de paz, eu tentava assimilar as informações e pensar no próximo passo. Como impedir o inevitável? Apenas matando o Ódio. Como matar o Ódio? O "x" da questão. Olhei para Javier, transtornado e compreensivo com a minha situação. Como pude desconfiar deste homem? Como pude achar que ele poderia ser nada mais ou nada menos do que perfeito? Os olhos tão desejados estavam marejados de lágrimas. Ninguém nos via. Rodeei meus braços em seu pescoço e olhei-o nos olhos.

-Eu te perdoo. - E suas lágrimas caíram com mais força, demonstrando fragilidade e arrependimento. Ele fechava os olhos na tentativa de impedir que elas caíssem, mas não auxiliava. Levantei o seu queixo e beijei sua bochecha. - Está tudo bem. Você pode ficar bem agora. - Sorri. E ele riu com meu sorriso. Este riso, meu. Meu sorriso, dele. E algo diferente disto não poderia fazer parte do nosso cotidiano. Seus ombros relaxaram ao ver que eu estava sorrindo. Seu polegar acariciou minhas bochechas coradas. 

-Duvida da luz dos astros, de que o sol tenha calor. - Suspirou. - Duvida até da verdade, mas confia em meu amor. - Suplicante. Olhos vermelhos, rosto inchado. 

-William Shakespeare. - Eu disse, olhando em seus olhos. Nem mesmo ali, desalinhado, acabado, perdido, ele poderia ser menos bonito. Suas palavras atingiram cada laço de dúvida que ainda me sobrava. Impotente, inocente, incapaz é o meu amor. Que não conseguiria jamais definir a verdade ou a mentira. Mas que o amava, que o ama. 

-Aprendi alguma coisa em todos esses anos, não é? 

-Você sabe que esse poema é o que eu mais gosto. 

-Eu sei. Você havia recitado-o para mim uma vez. E eu jamais o esqueci. E devolvo a você o amor que eu nunca soube dar. Mas agora, eu sei. E entendo se você não quiser mais esse amor. Entendo se você quiser jogá-lo fora. Eu errei e não mereço mais tal amor. - Abaixou a cabeça. - Perdoe-me. - Ficou em silêncio, com a cabeça abaixada, em respeito a mim. Ele não esperava uma resposta positiva, isto era visível.

-Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se. - Eu disse. E em seus olhos era visível o que não conseguia expressar com palavras. Estava pasmo, feliz, confuso. Um tornado de emoções. 

-Este eu não conheço.

-Pablo Neruda. 

Sorriu. Eu derreti-me. A saudade já era tanta, que joguei-me aos seus braços sem pensar. O fardo que carregava sozinha era dividido quando eu estava com Javier. Brincou com seu nariz no meu enquanto sorria. Beijou o canto da minha boca, pedindo espaço. Quase cedi, quando um pensamento me veio à mente.

-Javier. Os Cupidos.

-Quais?

-Os que estavam presos aqui?

-Já os tirei daqui. Levei-os para o Panteão. Gabriel e seus amigos terão todo o trabalho sozinhos. De você cuido eu. - Mais um sorriso. E um beijo. Seus lábios frios tocaram os meus e logo se esquentaram. Sua mão foi até meu pescoço, acariciando minha nuca e meus cabelos. - Eu senti sua falta. - Seu suspiro na minha orelha. Eu gostaria de falar que também senti a falta dele, mas estava apreciando. 

-Preciso voltar. - Hesitei. - Precisamos voltar. Você precisa vir comigo, Javier. 

-Fora de questão. Serei trucidado. Vão me degolar. 

-Não se eu impedir. Você sabe o poder de intervenção que eu tenho por lá.

-É arriscado, Íris. 

-É arriscado você ficar por aí sozinho, Javier. Precisamos formular um plano para encontrar o Ódio. Matá-lo. Se você estiver sozinho, pode ser morto. Ele certamente vai acabar sabendo que você me contou tudo. Vamos embora, eu pago o táxi.

-Ei, cavalheiro. Espere um pouco aí. - Disse, e tirou um maço de dinheiro do bolso. - Eu tenho meus truques.

(...)

-Fora de questão. Eu não quero ele aqui. - Punhos cerrados. Todos olhavam Gabriel à minha frente, começando a se irritar. 

-Gabriel...

-Não! Ele nos traiu, caramba. Ele te traiu! Não é suficiente para você ser traída? Humilhada? Ele nos apunhalou pelas costas. Ele te usou.

-Ouça o que ele tem a dizer, Gabriel. - Supliquei.

-Ouvirei. 

-Como?

-Ouvirei. Você tem dez minutos para me convencer da sua inocência, infiel. - Apontou para Javier. - E você, - apontou para mim - temos muito a conversar. 

Meus sapatos de salto faziam um barulho quase inaudível no tapete do corredor. Tinha uma vontade incontrolável de roer as unhas. Não conseguia distinguir nenhum barulho atrás da porta. Era um bom sinal, significava que nenhum dos dois gritava. Ouvi o barulho da maçaneta e fiquei em frente à porta.

-Ele me convenceu. - Olhos quase negros me fitavam. - Informações concretas demais para serem mentira. Amanhã vamos atrás do Ódio. Javier, você dorme no nosso quarto hoje. 

-E quanto aos outros Cupidos, estão todos bem? - Perguntei.

-Todos bem e devidamente instalados. Vou conversar com eles e explicar a situação. Fiquem aqui. Dê algo para ele comer, Íris. 

Gabriel saiu. E eu sabia que ele estava irritado. Não com a situação, mas comigo. Por confiar em Javier, por recebê-lo tão bem, e ignorar o beijo que ele havia me dado. Ele estava irritado por não estar no lugar de Javier. Ele, mais do que qualquer outra pessoa, não tinha medo de morrer. Seu maior medo era me perder, de todas as possíveis formas. E eu senti-me mal por fazê-lo estar mal. 

-Um café? 

-Seria bom.

Café com biscoitos. Comemos em frente à televisão. Ele tomou um banho e pegou uma roupa emprestada com Gabriel. Estava bonito, com os cabelos molhados. Deixei os dois em frente à televisão e deitei-me. Precisava dormir. O dia seguinte, eu sabia, seria um longo dia. 

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