Ode à morte

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A sensação de morte é sufocante. A doce agonia e espera, sussurrando no ouvido. Eu estou lhe esperando, querida. Venha ter comigo, amada. Envolverei seu delgado corpo em meus braços. 

Não, morte. Eu não irei.

Enquanto me arrumava para encontrar-me com o Ódio, preparava-me psicologicamente para toda e qualquer circunstância. Prendi meus cabelos em um rabo de cavalo. Olhei-me no espelho. Peguei a tesoura. E cortei os cabelos acima da presilha de cabelo. Os cabelos, agora curtos e rebeldes, moviam-se para todos os lados. Limpei o resto de maquiagem que sobrou do meu encontro com Javier, para que não fossem encontradas marcas de fragilidade. Coloquei uma calça e uma camiseta qualquer no corpo. Definitivamente, eu não estava nada bonita. Mas eu estaria com o Ódio. Portanto, isto realmente não importava. Aquele corpo não era meu. Aqueles olhos não eram meus. Eu não era como qualquer outra humana, eu era um Cupido. E eu faria de tudo para conseguir o meu trabalho de volta. 

-Pronta? - Javier me perguntou.

-Não muito. 

Poucas foram as horas em que eu realmente senti frio na barriga. Eu estava sentindo. Frio, dor. Um inverno passava pelos meus órgãos e músculos, parecendo enrijecê-los. Parada em frente ao espelho, conseguia ver apenas o semblante de uma menina derrotada. Antes mesmo da guerra, antes mesmo dos acontecimentos, eu já estava derrotada. 

-Tranquilize-se. - Suas mãos acariciaram meus ombros. E eu ainda me encarava, não por orgulho ou amor próprio. Mas por saber que eu poderia acabar com o destino de todo um mundo em apenas um dia. Uma lágrima solitária escorreu pelo canto do olho, atravessou a bochecha e desmanchou na barra da minha camiseta. Eu queria poder ser forte, poder dizer que tudo daria certo. Mas durante todo esse tempo, eu fingi que era forte. Fingi que as coisas poderiam acontecer ao meu tempo, do meu jeito. Fingi ser forte, o que só me fez mais fraca. E eu não estava pronta para o pior possível. Meus joelhos fraquejaram e as lágrimas começaram a descer, batendo no chão, minha cabeça abaixada em rendição e desespero.

-Não. - Soltei, com a respiração entrecortada pelos meus soluços intermináveis. O choro ecoava pelo quarto, e apenas Javier me ouvia. Eu sentia, mesmo com a cabeça abaixada, seus olhos em mim, e não queria saber se ele estava sentindo pena, porque eu não merecia pena. Eu merecia tapas bem dados pelo meu altruísmo nulo.

-Não, - respirou - o quê?

-Não posso continuar. - Mais soluços.

-Como assim? Não vai conosco?

-Não posso resistir. 

-O que quer dizer com isso?

-Dê-me ao Ódio, Javier. Deixe-me morrer pelas mãos dele. - Um plano era formado na minha mente. Cada detalhe da minha morte, sendo mártir do meu povo. O caos sendo instalado, os Cupidos e os Sombras lutando ferozmente para vencer, inspirados ambos os povos pela minha morte. - Será melhor para todos, Javier. 

-Está sendo estúpida e imatura, Íris. 

-Javier...Qual é o seu plano? Conversar com o Ódio? Acha que vai realmente resolver alguma coisa? Ele irá trucidar-nos. Isso só irá deixá-lo com mais raiva. O Ódio não é comumente aberto a negociações. Por isso eu quero fazer um sacrifício, um sacrifício em nome de todos nós. Se eu morrer pelas mãos do Ódio, todos vocês terão mais do que um motivo para lutar.

-Não seja egoísta! - Gritou comigo, sua mão foi parar no meu pulso. Recuei, temendo contato com seus olhos. As lágrimas caíram com mais força. Seu contato no meu braço afrouxou-se, e ele abraçou-me. - Eu preciso de você, todos precisamos de você. Se você se for, jamais saberemos como lidar com o Ódio. Você é boa com palavras. Negocie.

Apoiei-me na parede, torcendo para que houvesse um terremoto.

-Vamos. 

(...)

-Diga-me a localização do Ódio. - Ainda visivelmente chateado, Gabriel dirigia sua palavra à Javier. - Já que é um feiticeiro, deve ao menos saber isso.

-Logicamente, senhor Eu-Mando-Em-Tudo. 

-Sem gracinhas, argentino de meia-tigela. Ou senão te coloco em um tanque com tubarões brancos para sofrer.

-Place de la Concorde. - Imitou o sotaque francês, fazendo um muxoxo em desgosto.

-Vamos. 

(...)

Sua magnificência não poderia ser menos interessante. O Ódio, sentado à fonte da praça, cruzava suas pernas e olhava a todos os seres humanos com desdém. Seus amigos Sombras estavam espalhados por toda a praça, brincando com os humanos cegos pela magia. Eu jamais poderia afirmar que o Ódio não era bonito. Seus cabelos pretos bem cortados emolduravam seu rosto angelical, os olhos verdes estonteantes e penetrantes eram perigosamente atraentes, e seu sorriso indicava uma natureza pecaminosa. Bonito, sim. Perigoso, muito mais. Assim que colocamos os pés na praça, seus olhos viraram-se para mim. Um sorriso de canto de boca foi o que eu pude receber, e em troca, sorri também. 

Vamos jogar.

Os Sombras perceberam nossa aproximação e ficaram todos em guarda atrás da fonte. Uma legião de Sombras, prontos para matar; sedentos. Todos bem alinhados, em guarda, esperando a ordem de seu senhor. Havia em torno de dez mil Sombras, pelas minhas contas. Levantei a mão direita, para que todos os Cupidos parassem de andar. Estávamos em visível desvantagem, e eu precisaria encontrar uma fraqueza no Ódio para vencer a todos os Sombras. Caminhei até a fonte e o Ódio levantou-se para receber-me.

-Cada vez mais inútil, não é, pequena ex-Cupido? - Riu com desdém.

-Acha mesmo? Pois eu me acho bem útil, Ódio. Você contratou Javier para me seduzir, não foi? Talvez eu não seja tão inútil assim...

-Poupe-me dos detalhes. Não queria nenhum verme como você impedindo os meus planos. - Levou a mão direita ao meu rosto, e apertou meu queixo. - Ah, como eu implorei por este momento. - Ergueu a cabeça ao céu. - Obrigada, Deus. - Riu. - Como implorei por ter seu sangue em minhas mãos, Íris. Sangue doce, puro, perfeito. Sem mácula. O melhor que poderia ser derramado. Você será o estopim do meu poder. Se eu matá-la aqui, hoje, por meio de minhas mãos... Seu sangue será meu. Seu poder será meu. E eu poderei fazer o que quiser. Nem preciso mais do imprestável do Javier, consigo até mesmo realizar magia por mim mesmo. Estou sempre ficando mais forte, me alimentando do poder de vocês. Mas tê-la aqui, de bandeja, apenas para mim... Você me entregou o maior presente que me poderia ser dado. Você mesma; minha fonte de poder e glória.

-Não me entreguei ainda, Ódio.

-Não há escolha, Íris. Você será morta.

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