Luz

68 16 4
                                    

 O momento pré-morte é como aqueles que vemos em filmes. Tudo parece mover-se mais lentamente. A água corrente da fonte respingava em meus olhos, em decorrência do vento forte. O som das armas se chocando, estridente, tornou-se mais fraco. Eu sabia que perderia a consciência, e logo depois morreria, meus órgãos sendo dilacerados, o sangue formando uma poça no chão junto com os meus planos jamais cumpridos. O Ódio deixou-me para morrer lentamente, uma morte doce e silenciosa dentro da minha cabeça, esperando a falta de sanidade.

Prostrada à sua maldade, gemidos de dor saíam de mim, acompanhados de grunhidos, coisas que eu gostaria de dizer. 

Meus pensamentos deixavam os meus olhos marejados.

-Eu te amo, ódio. - Disse. - Eu te amo.

-O que disse?

-Eu te amo. Eu amo a todos. O meu erro foi não amar. - Engasguei. Tossi, e cuspi sangue. A dor contraía os meus músculos, todos eles. Minhas mãos trêmulas indicavam a minha falta de capacidade de manter-me viva. 

-Louca. Você está louca. - Olhos frios me encaravam enquanto lágrimas desciam com força pelo meu rosto.

-Eu te perdoo, Ódio. - Tomei fôlego para falar. - Eu perdoo tudo o que você fez. - Desencargo de consciência. Minhas palavras tornaram minha mente mais leve. Não havia porque sentir ódio dele. Eu deveria oferecer o que eu tinha. Apenas poderia oferecer o que eu tinha. A única coisa que possuí durante todos esses anos como Cupido foi a capacidade de amar e de oferecer o amor. O amor em todas as suas facetas, sem distinções.

Os anos começaram a passar na minha cabeça em segundos. Coisas pequenas, coisas simples, mas que faziam parte da deliciosa sensação de amar e ser amado.

Lembrei-me de uma mãe acariciando o filho pequeno em seu colo, cantando uma música de ninar.

Lembrei-me do marido tomando conta de sua esposa enquanto esta estava no hospital, internada, por conta de um câncer.

Lembrei-me de uma amiga aconselhando a outra. Esta última, jogada aos braços da única conselheira que tinha, chorando até que as lágrimas secassem.

Lembrei-me de um casal de namorados, cuidando um do outro mesmo depois de uma discussão. A vontade de reconciliarem-se, o cuidado para que as palavras seguintes não fossem motivo de tristeza.

Sorri.

Lembrei-me dos olhos azuis inquisitivos de Gabriel sobre mim. 

Lembrei-me das suaves mãos de Javier, que eram cuidadosas e traziam-me tranquilidade. Lembrei dos cabelos sedosos, dos olhos atentos, do sorriso acolhedor. 

Eu os amo. 

Eu só posso amar. 

A única coisa que possuo é o amor.

Com o restante de força que possuía, coloquei-me de pé. Eu teria que realizar meu último ato de amor, meu sacrifício, morrer como deveria morrer. Abracei o Ódio.

-Obrigada. - Disse, dando-lhe um beijo. Meu último ato de amor. Não foi direcionado somente ao Ódio. Foi um ato direcionado a todos aqueles que mereciam o amor. A todos os seres humanos, Cupidos, feiticeiros, animais e outros. Depois disso joguei-me ao chão. Olhei o céu nublado. E pedi para que tudo desse certo. Esperei que o meu corpo fosse consumido pelo torpor.

E não foi.

Luzes começaram a ser emanadas de meus ferimentos. Uma espécie de cheiro doce instaurou-se em toda a praça. Os guinchos de armas se chocando cessou. Todos olhavam para meu corpo inerte, estirado no centro da praça. Olhos infestados de curiosidade, querendo entender o que estava acontecendo comigo. A luz vinda de mim começou a correr por entre todos os corpos presentes. Identifiquei o rosto de Javier em meio à multidão, e pude soltar um meio-sorriso. 

Quando a luz começou a percorrer os corpos dos Sombras, eles começaram a contorcer-se, como se estivessem sofrendo algum meio de morte agonizante. Um por um, foram vaporizados, reduzidos a pó. 

Por fim, a luz rodeou o Ódio. Ele estava assustado, sabendo que sua morte poderia ser como a de todos eles. 

-Ódio. - Chamei sua atenção. Sua face transtornada não sabia nem ao menos aonde eu estava. Fixou seus olhos em mim. - Perdoe-se. A si mesmo. Ame. E ela não lhe fará mal algum. 

Seus olhos fecharam-se. A luz ainda o rodeava, como se estivesse decidindo se ele possuía resquícios de algo bom dentro de si ou não. Ele abriu os olhos novamente e olhou-me com ternura. A luz decidiu-se e voltou para dentro de meu corpo. Meus ferimentos estavam curados. Não haveria mais guerra.

Ódio possuía arrependimento em seus olhos.

Jamais imaginei que viveria para presenciar tal cena.

(...)

Eu encarava os mesmos olhos. Os olhos multicoloridos que eu havia encarado antes de toda esta missão. 

-Você foi estúpida. - Três palavras. As primeiras três palavras que eu disse. Nunca me arrependeria de tê-las dito. - Trocou o cargo de Cupido por promessas feitas por um ser desprezível.

-Eu era o amor. Eu possuía mais amor do que todos os Cupidos juntos. Eu era a única Cupido, Íris. Jamais poderia dá-lo algo que não fosse o amor. Você sabe como é apaixonar-se por alguém. - Javier. Eu sabia que ela estava falando dele.

-Sei, coordenadora. Sei. - Bufei. - O Ódio está fazendo o trabalho dele?

-Não muito satisfeito, mas está. O incidente na praça o fez ficar... melhor, eu acho. - Falou com cuidado. Ainda havia uma pontada de paixão em seu tom de voz. Os olhos brilharam à simples menção do Ódio, relembrando um passado distante. Procurei distanciar meus olhos da sua expressão apaixonada e olhei para meu vestido florido. 

-Precisamos de um certo equilíbrio.

-Certamente.

-E como ficarão os Cupidos agora? Voltaremos para nossos corpos? Os originais?

-Sim, haverá uma leve alteração no espaço-tempo. Tudo o que eles fizeram antes, na vida como humanos, será desfeito. E eles começarão uma nova vida, como um jogo. Parar do ponto em que haviam "morrido" - fez aspas com os dedos - e construir uma nova vida. Começar do zero, mesmo.

-Mas e quanto aos nossos trabalhos como Cupidos?

-Não serão desfeitos. Mas, Íris, - ela levou a mão até a minha, que repousava tranquilamente na mesa de madeira - eu preciso conversar sobre este assunto com você; é um tanto quanto delicado. 

-Como assim? - Tirei minha mão da sua. Seu contato físico me incomodava, mesmo que ela estivesse sendo gentil. Estremeci, talvez pelo frio. 

-Estou te apresentando uma proposta. Você pode ser humana, como todos os outros Cupidos, e começar uma nova vida com Javier... Ou você pode ser a Cupido. A única. Abdicarei de meu cargo, e você tomará este cargo por completo, não podendo apaixonar-se por qualquer ser existente.

Congelei.


MemóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora