Ato consumado

88 15 7
                                    


Doze incríveis dias sem postar. A falta de palavras não esconde a quantidade de pessoas que estão acompanhando a história. Agradeço a todos que têm acompanhado, mesmo que sejam poucos. E ainda que sejam poucos aqueles que acompanham, eu não hesitarei em postar a história até que a última palavra seja escrita.

Palavras não ditas são as piores. São as promessas que jamais cumprirão. São os sonhos que jamais foram sonhados. São os biscoitos na beirada da prateleira, murchando com o tempo, esperando para serem comidos. Palavras não ditas são aquelas que deveriam ter sido ditas. São aquelas que deveriam mudar o tempo, mudar a história, mudar as circunstâncias. E por que nós nunca as dizemos? Por medo. 

Por que temos medo?

Por que ignoramos o fato de que as palavras podem ser um ponto de virada nas nossas vidas?

Por que não arriscar, não jogar os dados?

Por que não dizer?

Por que não sermos aquilo que poderíamos ser, e não somos... Por medo? Por falta de coragem? De perseverança?

O filme dos últimos meses passava-se dentro da minha cabeça, rodeando, cerceando os meus sentimentos, querendo abrir os cadeados com os quais guardava o meu coração. Eu havia me tornado uma humana, uma mortal, simplesmente pela quantidade e pela qualidade dos sentimentos presenciados enquanto lutava contra alguém, ou contra algo, que eu nem imaginava. Eu não imaginava, que das mãos de simples mortais que tornaram-se Cupidos, pudesse haver tal revolução. Pudesse haver mudanças tão drásticas, rostos complacentes esperando pela morte mais dolorosa possível. Como ser fria em meio a tudo isso? Como manter o coração enregelado, como acreditar que posso interpretar uma pedra em meio a tantos acontecimentos?

E enquanto fixava os olhos no Ódio, todas essas perguntas rondavam a minha mente. Eu deveria lutar, mas não era exatamente o que eu queria agora. Eu queria jogar me ao chão da praça e hibernar, até que isso tudo passasse. Ou eu preferia até mesmo morrer. O vento gélido me trazia uma leve sensação de morte iminente, as extremidades das mãos estavam quase dormentes. Passei a língua nos lábios ressecados, senti três lágrimas caindo da minha vista embaçada. Os cabelos recém-cortados permitiam também que o vento passasse pelo meu pescoço, causando arrepios na minha espinha.

Então era isso. Eu continuaria com o meu plano. Seguiria em frente com a minha morte. Seria o mártir para os Cupidos e eles lutariam como jamais lutaram antes. Antes de seguir com o meu plano, busquei olhar ao meu redor e vê-los, lutando com os Sombras. Unhas, dentes, facas, espadas, armas, sangue e poeira. Rostos sujos, marcados pelo cansaço e pela dor. Aquilo deveria acabar. 

-Mate-me, Ódio. Mas não os mate. - Supliquei. Seu rosto, indiferente à minha súplica. - Deixe que eles vivam, deixe que façam o trabalho deles. Sei que você quer que o mundo seja cheio de Ódio, seja só seu, mas nós nunca quisemos um mundo de completo amor. Sabemos que é necessário um equilíbrio entre o amor e o Ódio. Nós somos muitos. Eu não farei diferença, é verdade, mas não para você. Para eles eu farei diferença, eles ficarão abatidos com a minha partida. Faça-me uma promessa, Ódio. Mate-me. 

-Não lhe farei esta promessa, Cupido. Você bem sabe que eu sou o maior conquistador de terras neste planeta. Os homens estão cada vez mais cheios de amargura, de ódio, clamando por minha existência, desde que comecei a consumir os poderes de vocês. Quero matá-los de vez, tornar o ato consumado, ser o dono deste planeta. Matá-la, apenas a você, não me trará o que eu quero. 

-Ódio... - Pedi. Em meio ao meu silêncio, palavras escorregavam da minha mente e saíam sem serem pronunciadas. Palavras que eu gostaria de falar, mas não tinha coragem. Deixei que meus joelhos caíssem ao chão. O piso carregado de cimento ralou os meus joelhos, mas eu pouco me importava. Comecei a chorar compulsivamente, o corpo se contorcendo e corroendo meus músculos enrijecidos pela dor e pelo frio. - Por favor, Ódio, por favor. - Súplica mais do que desnecessária. Minhas lágrimas caíam em suas calças negras, deixando-as molhadas.

-Palavras bonitas não são motivo suficiente, Íris. - Puxou uma faca. Eu sabia o que ele iria fazer. 

-Espera. - Pedi. - Levei ambas as minhas mãos no seu rosto, puxando o pelas bochechas. Beijei sua testa. - Que Deus o guarde. Que tudo aconteça conforme deve acontecer. - Estas foram as palavras mais carregadas de poder que eu já havia pronunciado. Um grito de desespero, um último momento de força. Seus olhos confusos encontraram os meus, e dei um último sorriso. - Fique bem.

Abaixei a cabeça para receber o golpe. A facada atingiu-me no estômago. A lâmina afiada perfurou-me, rasgando me. Ele não deu mais uma em seguida, ele apenas olhou para minha careta de angústia. Ele apreciou a minha dor, a minha amargura.

Eu o perdoo, Ódio. 

Tudo vai ficar bem.

Desculpe-me, Javier.

Desculpe-me, Gabriel.

Desculpe-me, mundo.

Eu jamais tive qualquer intenção de causar problemas.

Um outro golpe foi dado na minha coxa esquerda. Caí completamente, meus lábios arranhados pelo chão. 

Eu poderia ter feito melhor.

Tudo poderia ter sido diferente.

Eu fiz algo de errado. 

Como pude?

Como pude comprometer a todos apenas com o meu egoísmo?

Ele puxou o meu cabelo, me fazendo dar de cara com o chão pela segunda vez. Ignorei a dor latejante dentro de mim. A dor que me fazia urrar em desespero. Eu tinha consciência de que os meus gritos estavam bem mais altos do que o necessário, mas eu os ignorava. 

A culpa foi toda sua, Íris.

Você sempre julgou tanto os outros, e quanto a você?

Nunca se olhou no espelho?

Nunca percebeu que durante tudo isso você achou que as suas ordens deveriam ser cumpridas, e não se dispôs a ouvir os outros?

Como, como eu pude?

MemóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora